- Prof. José Manuel Lopes Lima
A epilepsia é uma doença fisiológica do foro neurológico. Por um lado, é importante que os doentes a assumam, por outro, há que quebrar mitos e acabar com estigmas, em prol da integração das pessoas com epilepsia na sociedade.
César, Joana d’Arc, Napoleão Bonaparte e Vicent van Gogh. Personagens da História muito diferentes, mas «unidos» pela mesma doença: a epilepsia.
Por muitas décadas foi considerada como um fenómeno paranormal, até mesmo algo relacionado com bruxarias. Os mitos eram demasiados e quem «sofria na pele» e, em especial, no cérebro eram os próprios doentes. Afinal, acabavam por ser vítimas de mitos, preconceitos e estigmas. Incrível e curiosamente, nos dias de hoje, nem todos os mitos foram quebrados e o estigma marca ainda presença em diversas sociedades.
Urge, pois, encarar a epilepsia como a doença que é, ou seja, do foro neurológico, e acabar com preconceitos, de forma a que os doentes a assumam e com ela «convivam», na medida do possível.
Breve introdução à epilepsia
«Sendo caracterizada pela repetição espontânea de crises epilépticas, a epilepsia é um termo que engloba múltiplas manifestações anormais do comportamento cerebral, mas sempre sob a forma de crises que se repetem espontaneamente», diz o Prof. José Manuel Lopes Lima, frisando que «a epilepsia não é uma entidade única ou uniforme».
De acordo com este consultor de Neurologia do Centro Hospitalar do Porto – Hospital de Santo António, «as crises podem ter diversas causas, desde as de carácter hereditário e que aparecem em indivíduos sem qualquer outra patologia neurológica, às que são secundárias a prévia lesão do córtex cerebral».
Tal disparidade manifesta-se igualmente em termos de prognóstico. Algumas epilepsias surgem somente durante certas fases do desenvolvimento e da maturação cerebral e depois desaparecem, sendo raramente necessária terapia farmacológica.
«Existem outras que são sintoma de patologia cerebral mais ou menos grave e são, muitas vezes, acompanhadas de outras manifestações neurológicas ou psiquiátricas, ocasionando no seu conjunto uma dificuldade, por vezes dramática, de reabilitação», completa José Manuel Lopes Lima, que também é presidente da Liga Portuguesa Contra a Epilepsia (LPCE).
Apesar dos mitos ainda associados, a epilepsia é uma das doenças neurológicas mais frequentes, tendo uma prevalência que atinge entre quatro a sete indivíduos em cada mil habitantes.
Segundo alguns estudos, em Portugal, aproxima-se dos cinco doentes por mil habitantes, estimando-se que existam cerca de 50 mil. Os mesmos estudos indicam que a incidência, que mede o número de novos doentes, aproxima-se dos 50 casos/ano por 100 mil habitantes.
No que diz respeito ao tratamento, ele é sintomático. Ou seja, desde que feito com regularidade, rigor e disciplina, a maioria dos doentes consegue controlar as crises. Porém, conforme indica José Manuel Lopes Lima, «mesmo com medicação, muitos mantêm um controlo inadequado das crises, com a correspondente diminuição da independência, da auto-estima e, consequentemente, da qualidade de vida».
Quanto à cirurgia, consiste em retirar uma parte do tecido cerebral, mas sem tocar no tecido que possa prejudicar o funcionamento normal do doente. Este procedimento requer o envolvimento de uma equipa multidisciplinar.
Epilepsia na infância
Mais de 50% dos casos de epilepsia começam na idade pediátrica ou na adolescência, alturas da vida em que apresenta algumas particularidades.
Segundo a Dr.ª Maria José Fonseca, neuropediatra, coordenadora do Centro de Desenvolvimento da Criança Torrado da Silva, do Hospital de Garcia de Orta, «embora as características das crises nas crianças possam ser idênticas às dos adultos, podem revestir-se de formas especiais, porque o cérebro ainda está em desenvolvimento».
Um outro aspecto a considerar na infância é o diagnóstico. Este deverá ser precoce porque, como a criança está numa fase de grande aprendizagem, é fundamental identificar e, quando indicado, iniciar o tratamento para, dessa forma, promovermos o desenvolvimento da criança da maneira mais adequada possível.
Por outro lado, o diagnóstico vai condicionar a vida da criança a nível familiar, escolar e social.
«Os pais têm uma natural tendência para superproteger os filhos, sendo isso negativo para o desenvolvimento global de qualquer criança, e mais ainda se ela possui uma doença crónica, nomeadamente epilepsia», aponta Maria José Fonseca, frisando que, «além de tentar controlar as crises com medicamentos, deve-se atender aos outros aspectos referidos».
E exemplifica: «Os pais deveriam falar com o professor, com o intuito de o esclarecer sobre alguns aspectos relacionados com a epilepsia do seu filho. É importante haver divulgação para que não haja discriminação. Até porque estas crianças têm, em geral, a mesma capacidade de aprendizagem (pode haver excepções, nomeadamente quando têm outras doenças associadas), pelo que devem ter as mesmas oportunidades.»
Fomentar o convívio entre as crianças, acabar com alguns mitos junto dos pais e divulgar o tema à população em geral são algumas das múltiplas acções levadas a cabo. Estes são os objectivos das actividades desenvolvidas pelo Centro de Desenvolvimento da Criança Torrado da Silva, em conjugação com a LPCE.
«Por exemplo, promovemos uma visita ao Oceanário de Lisboa, com dormida incluída, pois alguns pais têm receio de que os seus filhos com epilepsia durmam fora de casa e assim organizamos esta acção para mostrar que não há nenhum problema. Planeámos uma visita ao Zoomarine, no Algarve, e fomos de avião, pois também existe o mito de que não se pode viajar neste transporte», diz Maria José Fonseca.
Entre muitas outras actividades, saliente-se a realização de concursos de desenho para crianças com epilepsia, piqueniques, a travessia da ponte 25 de Abril, integrada na mini maratona, e ainda muitas sessões de esclarecimento sobre esta patologia (definição, como lidar com as crises, etc.) dirigidas aos mais pequenos e outras aos seus familiares, educadores e professores.
«Com estas acções pretendemos demonstrar que as crianças podem ter uma vida normal, igual à das que não têm epilepsia», sublinha a coordenadora do Centro de Desenvolvimento da Criança Torrado da Silva.
Todavia, os pais são sensibilizados para a importância de uma vigilância médica regular e para a adopção de atitudes adequadas a uma vida saudável, tais como manter um sono regular, de modo a evitarem factores que possam propiciar o desencadeamento de crises.
Epilepsia na idade adulta
«A epilepsia no adulto é diferente da epilepsia na criança, quer nas suas causas e prognóstico, quer no impacto que têm nos aspectos práticos da vida», aponta a Dr.ª Carla Bentes, neurologista no Hospital de Santa Maria, em Lisboa.
Se na infância existe uma certa problemática relacionada com a escola e com os tempos livres, na idade adulta a dimensão social intensifica-se e alarga-se a outras áreas. O indivíduo com epilepsia depara-se ainda com a integração no emprego, com a condução de veículos e com o planeamento familiar.
Para Carla Bentes, «o doente tem de assumir a doença. Esconder não é uma boa atitude, nem para o próprio, nem para as pessoas que o rodeiam. Actualmente, a maioria das epilepsias é tratável, mas é necessário procurar auxílio médico».
Tal como acontece com as crianças, também o adulto pode ter um quotidiano normal. Contudo, poderá ter que se adaptar a algumas alterações da sua rotina diária, que deverão ser avaliadas pelo neurologista e individualizadas caso a caso (exemplo: não conduzir se mantiver crises, não manusear máquinas ou substância perigosas, etc.).
«A sexualidade pode sofrer algumas alterações, associadas à própria doença, a alterações endócrinas, aos medicamentos ou a doença psiquiátrica concomitante», avança a neurologista do Hospital de Santa Maria, acrescentando:
«Alguns anti-epilépticos interferem com a pílula. A gravidez deve ser sempre planea-da. O objectivo é que a grávida esteja sem crises e se possível medicada com um só antiepiléptico durante a gestação. Para além disso, deve ser prescrito um suplemento de ácido fólico.»
Qualidade de vida do doente
É inevitável. Todas as doenças crónicas têm impacto na qualidade de vida do doente. E o da epilepsia pode ser maior, sobretudo, devido à imprevisibilidade das crises e ao estigma associado.
O trabalho desenvolvido ao longo de mais de 35 anos pela Liga Portuguesa Contra a Epilepsia e pelos três epicentros (Porto, Coimbra, Lisboa) da EPI-Associação Portuguesa de Familiares, Amigos e Pessoas com Epilepsia (EPI-APFAPE) é deveras importante na qualidade de vida destes doentes.
O Eng.º Nélson Ruão é presidente da EPI-APFAPE e, segundo afirma, «o objectivo principal dos epicentros é, claramente, representar e apoiar mais de 50 mil pessoas afectadas por qualquer forma de epilepsia em Portugal».
O apoio é feito através da promoção da saúde e do bem-estar social e da defesa dos seus direitos. Uma das estratégias é mostrar ao público em geral que uma pessoa com epilepsia é igual a todas as outras.
«A epilepsia pode ter impacto em todas as fases do desenvolvimento pessoal e em todas as esferas sociais, veiculando ainda um considerável estigma social. Podem desenvolver-se reacções psicológicas adversas, incluindo estratégias mal adaptadas para enfrentar a situação», alerta Nélson Ruão, completando:
«Essas reacções incluem ocultação do diagnóstico, protecção exagerada da pessoa com epilepsia, correndo alguns indivíduos riscos impróprios. Pode associar-se falta de confiança e pouca auto-estima, que se tornam psicologicamente incapacitantes.»
É necessário educar a pessoa com epilepsia, assim como os profissionais e os empregadores, para melhorar o potencial de emprego destes doentes, de modo a que se reflicta na melhoria da qualidade de vida.
Aliás, segundo o presidente da EPI-APFAPE, «o bem-estar vai além do controlo das suas crises, sendo a integração na sociedade, o direito ao emprego e o apoio às necessidades diárias específicas de uma pessoa com esta condição extremamente importantes para complementar o trabalho médico».
Apesar de ser uma jovem associação, a EPI já oferece vários serviços aos seus associados, os quais pretende manter e expandir.
«Destacamos os grupos de ajuda mútua dirigidos a jovens e adultos com epilepsia, bem como um grupo de apoio a pais de pessoas com epilepsia; um programa de voluntariado; as acções de informação gratuitas em escolas e diversas instituições públicas e privadas com o objectivo de divulgar a EPI e sensibilizar a população em geral para a problemática», sustenta Nélson Ruão.
No futuro, perspectivam-se projectos de maior calibre, tais como criar as delegações periféricas, que permitirão alargar mais ainda o âmbito da acção da EPI.
Epilepsia é confundida com uma doença mental
Optimizar o conhecimento sobre os diferentes aspectos das epilepsias e divulgar aos diferentes intervenientes conhecimentos actualizados sobre a doença. Eis os principais interesses da Liga Portuguesa Contra a Epilepsia (LPCE).
A LPCE dirige-se aos seus associados, bem como a todos os técnicos de saúde envolvidos no diagnóstico, tratamento e reabilitação das pessoas com epilepsia, aos doentes, seus familiares e amigos e ao público em geral.
As actividades que desenvolve são, muitas vezes, realizadas em parceria com a EPI – Associação Portuguesa de Familiares, Amigos e Pessoas com Epilepsia (EPI-APFAPE).
«As pessoas com epilepsia sofrem não só as limitações que a sua doença lhes impõe, mas também de uma série de condicionalismos provocados pelo desconhecimento que existe», menciona o Prof. José Manuel Lopes Lima, consultor de Neurologia do Centro Hospitalar do Porto – Hospital de Santo António e presidente da Liga Portuguesa contra a Epilepsia.
«A epilepsia», prossegue, «é muitas vezes confundida com uma doença mental e está envolta numa névoa de falsos conceitos e de mitos que levam à super-protecção dos pais e à rejeição dos educadores e, mais tarde, dos empregadores, tendo como consequência última uma importante perda de oportunidades de aprendizagem e de diferenciação, com consequente dificuldade de empregabilidade e de adaptação à vida em sociedade».
E conclui: «Apesar de se terem verificado muitos avanços nestes aspectos, ainda resta muito por fazer. Contribuindo para um maior conhecimento científico dos diferentes aspectos da doença e para a divulgação do conhecimento adquirido aos diferentes estratos sociais, a LPCE está a contribuir de uma forma efectiva para melhorar este estado de coisas.»
Sítios:
www.lpce.pt
www.epi.do.sapo.pt
Contactos:
Epicentro Porto (Sede)
Tel./fax: 226 054 959
Email:
[email protected]
Epicentro Coimbra
Tel./fax: 239 482 865
Email:
[email protected]
Epicentro Lisboa
Tel./Fax: 218 474 798
Email:
[email protected]
Texto: Sofia Filipe