Após receber o prémio Grand Challenges Exploration, da Fundação Bill & Melinda Gates, a equipa do Prof. Doutor João Gonçalves prepara-se, agora, para avançar para a fase de testes, em animais, das nanopartículas capazes de eliminar o VIH-1 em laboratório.
Embora o futuro ainda seja incerto, o investigador da Unidade de Retrovírus e Infecções Associadas (URIA) do Centro de Patogénese Molecular (CPM) da Faculdade de Farmácia de Lisboa acredita piamente que a cura do VIH/SIDA estará para breve.
«Há 20 anos, falar em cura do VIH/SIDA era uma heresia», denuncia o Prof. Doutor João Gonçalves. O investigador da URIA do Centro de Patogénese Molecular da Faculdade da Farmácia de Lisboa diz que, nos anos 90, quem ousasse falar numa solução definitiva para erradicar o VIH/SIDA do organismo era catalogado de «louco», já que os conhecimentos laboratoriais eram ainda embrionários.
Hoje, volvidas duas décadas, as classes terapêuticas disponíveis permitem controlar a carga vírica. Ainda assim, e apesar de todos os avanços no tratamento, o nosso entrevistado afirma que alguns mecanismos virais impedem o desenvolvimento de um fármaco capaz de erradicar o VIH/SIDA do organismo humano.
«O vírus possui “santuários” – na medula óssea, nos nódulos linfáticos e no sistema nervoso central –, ou seja, reservatórios de difícil acesso que se revelam na presença de condições específicas, como uma gripe ou uma infecção.»
O projecto da equipa do Prof. Doutor João Gonçalves (formada pela Doutora Mariana Santa Marta e por Pedro Perdigão, aluno de mestrado), que será financiado pela Fundação Bill & Melinda Gates, visa desenvolver uma técnica baseada em nanopartículas com potencial para eliminar o vírus.
«Por intermédio de uma única proteína, seremos capazes de identificar as células infectadas e provocar a sua apoptose. Através desta técnica, em laboratório, conseguimos uma taxa de eliminação de 95%. Mas esta investigação carece de mais tempo, até obtermos as conclusões finais.»
A bolsa Grand Challenges Exploration financia as ideias «relativamente audazes» no campo da cura do VIH/SIDA, da malária e da tuberculose. A investigação concorrente aposta numa outra perspectiva: administração de fármacos que forcem a expressão do vírus (escondido) no organismo. «Não é uma estratégia inicial, porque será necessária uma administração prévia de uma terapêutica anti-retroviral.»
Atravessar o Atlântico
Corria o ano de 1990 quando o Prof. Doutor João Gonçalves, na altura recém-licenciado, foi desafiado pelo Prof. Doutor António Moniz Pereira e pela Prof.ª Doutora Odette Ferreira a iniciar um projecto na área do VIH. A experiência no campo da Infecciologia não era inédita, pois já antes, enquanto estudante, tinha frequentado o laboratório para estudar as micobactérias.
Como, à época, a investigação sobre o VIH/SIDA estava a dar os primeiros passos, declinou o convite feito pela Faculdade de Farmácia de Lisboa, porque tinha o desejo Opiniãode se «aventurar pelo mundo fora». A Europa ainda não dominava nesta área, pelo que o destino acabou por ser, invariavelmente, os Estados Unidos da América, o centro de toda a inovação no VIH/SIDA.
«Com a ingenuidade de estudante, contactei, por carta, os Profs. Doutores Haseltine e Sodroski, em Harvard, na tentativa de integrar aquela equipa de investigação», recorda. Ainda assim, a coragem foi determinante para que o investigador português conseguisse carimbar o passaporte para o outro lado do Atlântico, com a admissão na equipa destes dois cientistas.
«Nunca tinha saído de Portugal e atravessar o oceano foi como descobrir o sonho americano, dado que o trabalho em Harvard, no campo do VIH/SIDA, estava a anos-luz do que cá se fazia. No início da década de 1990, não tínhamos um laboratório de classe 3 em Portugal. Manipular o VIH implicava uma elevada perigosidade, porque não estavam reunidas todas as condições. Hoje, já não estamos atrás do que melhor se faz em Biologia Molecular, mas, na altura, havia um grande atraso», admite.
Quando chegou aos Estados Unidos da América, vislumbrou um admirável mundo novo. «O ambiente de investigação era algo inimaginável. Só o laboratório de classe 3, onde se manipula o vírus, tinha cerca de 600 metros quadrados.» Durante quatro anos e uns meses ficou a «modelar» os conhecimentos na área do VIH, até programar o regresso a Portugal, o que acabou por acontecer, em 1995, depois de concluído o Doutoramento.

Prof. Doutor João Gonçalves: «Acreditei sempre que a tecnologia que deriva dos nossos estudos pode ser convertida em medicamentos».
Regresso à Pátria
Para o investigador, que sempre se sentira atraído pela disciplina de Química, desde a escola secundária, voltar a Portugal, em 1995, significou uma experiência nova. Ao longo de quatro anos, «saltitou» de cargo em cargo na Indústria Farmacêutica, até que, em 1999, decidiu candidatar-se à função de professor assistente na Faculdade de Farmácia da Universidade de Lisboa – a casa-mãe.
Na mesma altura, começou a trabalhar com um grupo liderado pelo Prof. Doutor Carlos Barbas III (descendente de espanhóis) em S. Diego, na Califórnia, na área da terapêutica com anticorpos. «Já dominava conhecimentos sobre anticorpos, VIH e tinha acumulado uma vasta experiência na Indústria Farmacêutica. Achei que havia chegado a altura de voltar a Portugal para iniciar um novo projecto. E assim foi no ano 2000, quando montei uma investigação na Faculdade de Farmácia de Lisboa.»
Nos últimos 10 anos, o Prof. Doutor João Gonçalves, em conjunto com 12 investigadores, desenvolveram um laboratório que pretende aliar a ciência básica e aplicada na área do VIH/SIDA. «A investigação não deve estar desligada da realidade», completa o farmacêutico. «As pessoas pensam que somos uns ratos de laboratório e que estamos sempre a mexer nos tubos de ensaio. Em boa verdade, admito que quando estamos a pesquisar algo também estamos a produzir nova tecnologia. Sempre procurei entender os calcanhares de Aquiles do VIH. Acreditei sempre que a tecnologia que deriva dos nossos estudos pode ser convertida em medicamentos», acrescenta.
Na «crista» da concorrência
Embora se dedique aproximadamente nove horas à coordenação do laboratório e à docência, o Prof. Doutor João Gonçalves revela que já não tem tempo para «mexer» nos tubos de ensaio. Um monte de papéis tomou, agora, de assalto a sua secretária.
Apesar da carga horária no laboratório, o investigador admite não conseguir «livrar-se» do trabalho de casa. Afinal de contas, é preciso inovar a cada instante, já que a concorrência que grassa pelo mundo fora é feroz.
«A minha tarefa passa por validar ideias e procurar novos âmbitos de actuação. O nosso objectivo é estarmos na crista da concorrência», sublinha, acrescentando que «só as ideias diferentes» conseguem singrar na imensa constelação de projectos de investigação.
In loco, os 12 investigadores estão encarregados de apresentar, regularmente, os resultados do trabalho em laboratório. Nas reuniões semanais, a língua oficial é o inglês, ainda que todos os investigadores tenham uma veia lusitana. «Estas discussões servem para debatermos as dificuldades e ultrapassarmos os obstáculos.»
E defende que o trabalho de investigação é semelhante a uma maratona: «Fartamo-nos de correr e temos imensas barreiras. Mas queremos ser os primeiros a cortar a meta.» Acresce, ainda, o facto de ser uma missão «solitária», porque cada investigador dedica-se a um projecto e tenta alcançar os resultados individualmente.
O trabalho de investigador é uma tarefa ingrata, porque os resultados não são imediatos: «É necessária uma boa dose de paciência para conseguimos manter um nível elevado de motivação.» A fórmula do sucesso é nunca desistir perante as adversidades. Mas, face ao vazio de resultados, que, por vezes, se repete ao longo de meses, a frustração é um sentimento difícil de digerir. «A falta de motivação traduz-se num desleixo. E este descuido é a morte do artista», explica.
O Prof. Doutor João Gonçalves, além de coordenar o trabalho, tem uma outra missão: incentivar constantemente a equipa. «Não nos podemos esquecer de que dar um passo à frente pode significar, numa determinada fase, dar dois atrás. E, neste trabalho, há que manter um elevado nível de concentração, que é um dos principais “ingredientes” do ambiente de investigação. Temos de nos manter suficientemente focados para não deixarmos escapar os pormenores.»
A outra margem
Léon Tolstoi, um escritor russo, dizia que «não é possível ser bom pela metade». O Prof. Doutor João Gonçalves acredita que, em ambiente de investigação, o cientista deve ter um olhar global. Só depois desta visão holística poderá incidir sobre o particular. Este é, aliás, um dos ensinamentos que este investigador português tem retirado da literatura oriental.
Na sua cabeceira já «repousaram» alguns livros que falam sobre Filosofia Oriental. É o caso de «A Confissão», da autoria de Tolstoi, uma obra em que o escritor analisa, retrospectivamente, os momentos mais marcantes da sua vida. A páginas tantas, Tolstoi esbarra com a cultura oriental e, nessa altura, começa a questionar alguns dos valores da sua existência.
Segundo o investigador, estes livros têm a capacidade de reavivar o espírito. Confessa--se, por isso, uma pessoa sedenta de leitura: «É uma forma de me desligar do trabalho. Tenho reparado que conseguimos tomar as decisões mais acertadas nas alturas em que nos abstraímos. Por vezes, temos um rasgo de lucidez: as melhores ideias surgem em momentos em que estamos completamente relaxados», afirma.
O investigador reconhece que «quanto maior a capacidade de desligar da actividade científica mais claramente se vêem os obstáculos e problemas».
Natural do Montijo, na margem Sul do Tejo, e com 44 anos, define-se como uma pessoa «apegada» às origens. Por isso mesmo, depois de regressar dos EUA, assentou arraiais na cidade que o viu nascer. Ainda assim, admite que um dia, quando se retirar da vida activa, deseja viajar pelo Oriente e conhecer, por dentro, uma cultura que tanto o tem cativado.
Fundação Bill & Melinda Gates apoia projecto português
No meio de três mil candidaturas, o projecto elaborado pela equipa dirigida pelo Prof. Doutor João Gonçalves obteve o financiamento da Fundação Bill & Melinda Gates, que premeia os trabalhos de investigação inovadores na área da cura do VIH/SIDA, da malária e da tuberculose.
«Partimos da hipótese de que conseguimos curar o VIH/SIDA, com base em material genético, administrado sob a forma de nanopartículas, que actua sobre uma toxina que se encontra no plasmídeo. Esta proteína, em laboratório, foi capaz de matar, selectivamente, a célula infectada, provocando uma reacção que se assemelha a um curto-circuito», esclarece o investigador.
Um dos próximos passos será testar esta técnica em animais. No final desta fase de investigação, que dura um ano, o projecto será novamente avaliado pela Fundação Gates que, conforme os resultados, dará o aval para a segunda fase de financiamento – a altura em que se irá começar a tratar os doentes já infectados no contexto de ensaios pré-clínicos.
Texto: Andreia Pereira