Verificou-se, nas últimas duas décadas, uma grande evolução no que respeita ao diagnóstico e à terapêutica do VIH/SIDA. Anteriormente, o seguimento destes doentes era muito complicado e a mortalidade bastante elevada. O Dr. Lino Rosado não esquece todos os problemas que envolveram, inicialmente, a patologia, assim como os momentos difíceis que passou ao lado de muitas crianças. Vivências essas que, com certeza, o tornaram numa pessoa «muito mais humana».
Informação SIDA® (IS) – O que recorda da sua infância?
Dr. Lino Rosado (LR) – Foi uma infância normal, de alentejano! Nasci em Moura, em Fevereiro de 1941, e lá vivi até ir para o liceu, em Beja. Depois, vim para a Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa. Foi, no fundo, uma infância e adolescência normais. Tive uma boa estrutura familiar e pais que sempre me apoiaram. Um começo de vida feliz e saudável.
IS – Já queria ser médico quando crescesse?
LR – Não, a vontade de seguir Medicina nasceu, apenas, na altura em que frequentava o liceu. Não tinha familiares médicos, mas desde essa altura que não tive outra opção, em termos de vida profissional. Era outra época. Não havia os grandes problemas de concorrência que existem actualmente. Entrava-se na faculdade com relativa facilidade, de forma que fui em frente com a minha opção. Assim como com a Pediatria, nunca tive dúvidas, entrei para a faculdade e, pouco tempo depois, essa foi a minha escolha.
IS – Consta que foi o primeiro pediatra português a tratar crianças com VIH/SIDA. É verdade?
LR – É verdade. E isso resultou de um facto circunstancial. Em 1984, altura em que fazia apenas Hematologia Pediátrica, tivemos, no Hospital de Dona Estefânia, a primeira criança com VIH. Na época, havia pouca experiência e informação em relação à infecção, mas tivemos de colocar mãos à obra, começando, entretanto, a receber as crianças filhas de mães infectadas. Desde aí, criou-se um espaço, na Unidade de Hematologia, para seguir as crianças com VIH.
IS – Era realmente isso que queria? Se pudesse voltar atrás, teria enveredado por outra área?
LR – Se pudesse voltar atrás, faria exactamente o mesmo que fiz até agora. Não modificava nada da minha intervenção. Era um desafio novo. Na altura, pouco se sabia acerca da doença e foi, também, muito com esse espírito que avançámos. Os desafios são importantes. Tive a percepção de que a situação, realmente, requeria esforço e investigação, de forma que enveredei por esse caminho.
IS – Conte-me um pouco do seu percurso profissional.
LR – Quando terminei a faculdade, não tinha dúvidas de que queria seguir Pediatria. Concorri e fui fazer um internato da especialidade no Hospital de Dona Estefânia, em Lisboa, sendo todo o meu caminho profissional feito nesta instituição. Efectuei os internatos e a carreira profissional completa, até ser chefe de serviço e, posteriormente, responsável pela Unidade de Imuno-hematologia. Foi esse exactamente o meu percurso profissional, sem grandes perturbações. Continuo a tratar crianças com patologia hematológica e com SIDA.
IS – Foi complicado começar a tratar crianças com VIH/SIDA?
LR – Ao início, foi muito complicado, porque se sabia muito pouco. Já existiam adultos infectados, contudo, crianças eram pouquíssimas. Estávamos em 1984. Foi bastante complicado, até mesmo pelas soluções terapêuticas existentes. Tínhamos apenas um medicamento, a mortalidade era muito elevada e o seguimento dessas crianças extremamente difícil. Entretanto, fizeram-se grandes avanços ao nível da investigação. Os meios de diagnóstico melhoraram extraordinariamente e a terapêutica, então, nem se fala. Neste momento, há uma lista enorme de medicamentos que se podem utilizar. Na realidade, passámos de uma doença aguda, com uma mortalidade alta e uma esperança média de vida de cerca de sete anos, para uma doença crónica, com um tempo médio de vida enorme.
No entanto, para a criança, o grande avanço foi a prevenção da transmissão vertical. A transmissão mãe-filho, que é a principal via de infecção da criança, que era, até finais dos anos 90, de 15-20%, é, actualmente, de cerca de 1%, desde que a doença na grávida seja detectada precocemente e que esta seja seguida correctamente. Nos países em que se cumprem estes pressupostos e em que Portugal está incluído, a infecção pelo VIH na criança deixou de ser um problema importante de saúde. Houve, efectivamente, uma enorme evolução desde os anos 80.
IS – Quando começou a tratar crianças com VIH/SIDA era ainda um médico muito jovem. Como foi lidar com esta realidade, assim como com a mortalidade infantil?
LR – Não foi nada fácil! Quando nos morre algum doente é sempre difícil, mas, de qualquer forma, eu já lidava com a doença crónica anteriormente, pois, as doenças hematológicas são, em grande parte, crónicas. Já tinha essa perspectiva e esse feedback e já conseguia viver mais ou menos com isso. Obviamente que não é fácil quando uma criança morre.
No que respeita à doença crónica, nós, médicos, acabamos sempre por ficar com uma ligação muito forte ao doente e à família e é difícil ver que todas as nossas intervenções não resultaram. Há sempre um amargo de boca muito grande e alguma descompensação. No entanto, por vezes, é também muito gratificante. É bom podermos lutar com os meios que temos disponíveis para minimizar os inconvenientes, não só da doença, mas também dos aspectos sociais, que sempre me preocuparam muito. Uma grande parte das famílias, principalmente, no início, era desagregada e com graves problemas, sendo que, muitas vezes, não havia mesmo como os resolver.
IS – Que realidade encontra, actualmente?
LR – Continuam a existir problemas sociais importantes. Neste momento, a maioria das crianças dessa altura, as que não faleceram, é adolescente e continua com grandes problemas sociais. No entanto, passaram para outra idade e, naturalmente, levantam agora outro tipo de preocupações. Um dos grandes problemas que persiste é a marginalização, que se mantém tal como no início, e com a qual elas têm de lidar. Tento, sempre, incutir-lhes isso. Como já referi, os novos casos de crianças infectadas pela mãe são muito poucos.
O problema, agora, está nos adolescentes, tanto os que são portadores do vírus desde o nascimento, como os novos infectados – que se infectaram na adolescência - quer por utilização de drogas injectáveis, quer por relações sexuais. Depois existem, ainda, os problemas socioeconómicos das crianças que vêm dos PALOP e que acabam por ter de ficar em Portugal, sem quaisquer condições.
IS – Quais as principais dificuldades que encontra no tratamento das crianças com VIH/SIDA?
LR – A principal dificuldade que encontro – fundamentalmente, nos adolescentes – é a adesão à terapêutica. Enquanto crianças, desde que consigamos demonstrar que o tratamento é fundamental, a família segue com relativo critério a toma dos medicamentos, mas, quando chegam à adolescência, torna-se mais difícil. Esta é uma fase muito especial da vida. Normalmente são os adolescentes que tomam conta deles próprios e às vezes mal. Este, sim, é um problema delicadíssimo.
A pior adesão está, exactamente, nos adolescentes. É um grupo etário especial, com problemas e com questões muito particulares. Outra situação complicada é a saída dos jovens com mais de 18 anos da Pediatria e a sua passagem para outro médico. Estão muito habituados ao pediatra – afinal, é uma vida – e é difícil deixar os hábitos e a ligação que estabeleceram. Essa passagem deve ser feita sem grandes perturbações e com uma ligação directa entre o pediatra e médico de adultos que vai continuar o seu seguimento.
IS – Cria laços com os seus doentes?
LR – Criamos laços muito fortes. Estamos a falar de uma doença crónica, em que passam toda a infância e adolescência com um médico e depois vão conhecer uma cara nova, com uma forma diferente de tratar e de lidar. Às vezes, não é fácil. Costumo manter ligação com os meus antigos doentes, já adultos. Como o problema principal dos adolescentes é a adesão à terapêutica, e considerando a importância do grupo como uma característica presente na adolescência – em que gostam e procuram estar junto de outros jovens –, o trabalho em grupo como espaço de veículo social favorece e propicia a adesão ao tratamento.
Assim, organizámos um grupo que se reúne de dois em dois meses, e às vezes mensalmente, e que lhes permite trocar informações, experiências, esclarecer dúvidas, reflectir sobre as suas questões e ficar à-vontade para expressar medos e angústias a partir da compreensão de que os seus sentimentos são comuns a vários outros membros. Este grupo tem vindo a fortalecer-se, o que é muito importante para aderirem mais facilmente à terapêutica. É também uma forma de as ligações se manterem, para além da adolescência.
IS – Onde são feitas estas reuniões? Que tipo de questões são colocadas?
LR – Realizam-se num espaço que nos foi cedido, fora do ambiente hospitalar. Em relação às questões levantadas, para além das ligadas ao processo da adolescência, existem outras, relacionadas com o facto de conviver com uma infecção potencialmente grave e construir um projecto de vida, apesar dos limites impostos pela mesma.
Formar um conhecimento acerca dessas questões, reflectir sobre elas e buscar formas de elaborá-las constituem objectivos do trabalho em grupo. Habitualmente, vão acompanhados pelos parceiros. Alguns têm filhos e levam-nos também. É um espaço interessante, eles sabem que podem falar de tudo abertamente, porque estão todos na mesma situação. Ajudam-se uns aos outros, na medida que podem. Aliás, um dos meus objectivos mais imediatos é, precisamente, a dinamização do grupo.
IS – Recorda algum episódio especial que o tenha marcado?
LR – Sim, recordo alguns que me marcaram bastante, mas lembro-me especialmente de um. Foi esta situação que fez com que criasse o Grupo de Apoio. Segui, durante anos, um adolescente encantador e muito simpático. Éramos muito amigos. Ele não conseguia aderir ao tratamento. Tentei sempre sensibilizá-lo para a importância da adesão à terapêutica, mas ele não conseguia. Dizia-me sempre que sim, que eu tinha toda a razão, mas não fazia. Um dia apareceu na consulta com uma infecção oportunista gravíssima e faleceu em 15 dias. Isto marcou-me muito. Tínhamos um laço muito estreito e foi, realmente, muito difícil e marcante. De tal forma, que me levou a pensar em criar o Grupo de Apoio. Foi muito marcante…
IS – Esta experiência que tem vivido mudou de alguma forma a sua vida? Considera que seria uma pessoa diferente se não tivesse enveredado por este caminho?
LR – Provavelmente. Todos os problemas sociais que envolveram, inicialmente esta patologia, assim como a forte ligação que tenho com os doentes e a família, tornaram-me, seguramente, mais humano… Muito mais humano.
IS – É diferente a abordagem que tem com estas crianças?
LR – É, naturalmente. Até porque colocam problemas sociais diferentes e muito importantes, que eu tento ajudar a resolver. Acabo por fazer, também, um pouco de assistente social. Posso não estar preparado, mas tenho de ajudar a resolver esses problemas. Tenho de «lançar a mão» a uma série de estratégias e estratagemas. De qualquer forma, o pediatra, como acompanha a criança durante toda a sua infância e adolescência, tem com ela uma relação estreita, assim como com a sua família, estimulando uma relação de confiança, avaliando o conhecimento e sentimentos da família em relação à infecção, garantindo o sigilo e confidencialidade e esclarecendo questões quanto ao tratamento.
IS – Quais as características que um especialista deve ter para lidar com o VIH/SIDA em crianças?
LR – Em primeiro lugar, tem de saber muito bem tudo sobre a doença, estar informado acerca dos medicamentos e dos regimes e ter experiência. Depois, tem de ser muito humano e ter capacidade de lidar com estas famílias.
IS – Considera que deveria haver mais pediatras a tratar o VIH ou uma maior interligação entre a Infecciologia e a Pediatria?
LR – Neste momento, como disse há pouco, crianças de novo infectadas – na Europa Central, Ocidental e nos Estados Unidos – são muito poucas, por isso não se justifica haver muito mais médicos envolvidos.
IS – Quais os próximos passos a dar nesta área?
LR – Fundamentalmente, é preciso investir na prevenção em relação aos adolescentes. Na criança, este problema já está resolvido. Em Portugal, praticamente, todas as grávidas são seguidas e rastreadas no que diz respeito ao VIH. Conseguimos fazer a profilaxia e ter crianças não infectadas, filhas de mães portadoras do vírus da SIDA. Agora, o grande passo a dar vai no sentido da prevenção nos adolescentes. É preciso que isto seja introduzido nas escolas, que se fale mais sobre a doença, assim como das formas de a prevenir e, ainda, da sexualidade. Toda esta informação é muito importante.
O estudo realizado pelo Prof. Doutor Fausto Amaro é muito realista, no que diz respeito à informação. É engraçado, e eu apercebo-me disso com os meus adolescentes, eles estão, de facto, muito bem-informados, acerca do VIH e de todas as doenças sexualmente transmissíveis e de como evitá-las. A informação não lhes falta, eles sabem, mas têm, muitas vezes, relações sexuais desprotegidas! Ou seja, a informação chega, mas no momento de utilizá-la, não o fazem. Verifica-se uma mudança de comportamento e é isso que é importante mudar. Contudo, não é algo que se resolva numa década. Provavelmente, leva duas a três. É uma mudança que leva tempo, naturalmente!
IS – E o que podemos fazer para contrariar esta realidade?
LR – Tem de se efectuar a profilaxia e continuar a insistir nisto. A adolescência é um período especial da vida, com características específicas de desenvolvimento. É uma fase de experiências e de perdas. Perde-se muito, mas também se experimenta muito. As alterações comportamentais são muito importantes. E estou convencido de que, neste momento, há já muito mais cuidado entre os adolescentes. Por exemplo, o uso do preservativo é muito mais frequente do que era há 10, 15 anos. Irá demorar ainda mais algum tempo para mudar completamente. A prevenção é, realmente, a maneira de evitar a doença, enquanto não tivermos a vacina ou uma terapêutica mais eficaz.
Texto: Sílvia Malheiro