Artigo de Informação SIDA®
Nº 82 / Setembro de 2010
38 «Hospital na Comunidade»
Medicação ao domicílio ajuda os doentes a cumprirem terapêutica
O ritual repete-se todas as semanas, desde o mês de Abril, altura em que arrancou o projecto «Hospital na Comunidade». Os profissionais da Associação de Jovens Promotores da Amadora Saudável (AJPAS) preparam as doses diárias de medicamentos (colocadas em caixas individuais coloridas, divididas por dias da semana) para os quase 30 doentes infectados, a quem entregam a medicação em mãos. Pode não ser o «remédio santo», mas as visitas ao domicílio têm demonstrado ser uma estratégia eficaz na adesão terapêutica aos anti-retrovirais.
Cristina, psicóloga e coordenadora do projecto «Hospital na Comunidade» já está a postos para acompanhar a ajudante de acção directa na ronda semanal. No perímetro de Amadora e Sintra, todas as semanas, a ajudante entrega a medicação, em mãos, aos doentes infectados, calcorreando as zonas de residência dos mesmos. Pelo menos uma vez por mês, a coordenadora ou uma das técnicas do projecto acompanha as ajudantes nas visitas.
Antes de colocarem as caixas coloridas – cada uma contém compartimentos onde são guardados os remédios divididos por dias da semana – dentro de um saco térmico, é previamente preenchida uma folha para o doente assinar. Assim se confirma a recepção da medicação ou se assinala qualquer ocorrência. Após a entrega da caixa cheia (de medicamentos, com as doses diárias), é recolhida a caixa vazia da semana anterior.
Para as técnicas do projecto «Hospital da Comunidade», que resultou de uma parceria entre a AJPAS e o Hospital Prof. Doutor Fernando da Fonseca (Amadora-Sintra), o maior desafio até agora tem sido conquistar a confiança dos 33 utentes, já que, só assim se consegue o cumprimentos dos objectivos propostos. Em muitos casos, os doentes revelam medo de serem identificados pelos vizinhos como portadores de VIH – um vírus que abre portas à discriminação. Contudo, a confidencialidade é sempre salvaguardada. E, para todos os efeitos, os profissionais que vão a casa das pessoas podem ser «amigos, assistentes sociais ou o que os utentes entenderem, de forma a evitar a associação à doença», atesta Cristina.
Antes de baterem à porta dos doentes, o hospital faz, preliminarmente, o trabalho preparatório de dar informações sobre o projecto. «No Serviço de Infecciologia do Hospital Prof. Doutor Fernando da Fonseca (HFF), os médicos seleccionam os doentes e cedem informações sobre o projecto. Os utentes são sinalizados com as devidas informações terapêuticas – e outros aspectos importantes – para o enfermeiro de serviço, que comunica com o “Hospital da Comunidade”», diz a Dr.ª Célia Carvalho, directora do Hospital de Dia de Infecciologia do HFF.
Após o aval dos utentes, a equipa consegue cumprir a missão de entregar os medicamentos nas mãos dos doentes – «maioritariamente, em falência terapêutica» ou a «iniciar a medicação», que controla a acção do vírus devastador do sistema imunitário. No entanto, como explica Cristina, não basta entregar os fármacos e vir embora.
«Todos os utentes são acompanhados pelo psicólogo – em casa ou nas instalações do projecto – e recebem visitas regulares do enfermeiro, que esclarece dúvidas, verifica se a medicação não está a provocar efeitos secundários ou avaliar qualquer alteração do estado de saúde do utente, referenciado por este ou pelo profissional que o visitou.» Para além da organização da caixa semanal, com alguns utentes, é necessário proceder à toma assistida da medicação, implicando a deslocação diária ao domicílio, uma ou duas vezes, consoante o regime terapêutico.
Olhar sempre atento
Quando se fala em toma observada, não há folgas, feriados ou fins-de-semana. Mas o esforço vale a pena, admite Cristina: «O objectivo é contribuir para a manutenção da qualidade de vida destas pessoas. Este trabalho funciona porque vamos percebendo os problemas e as dificuldades que levam à falta de adesão à terapêutica. Procuramos ajudar os utentes a ultrapassar essas dificuldades até se conseguir incutir a toma da medicação, sem falhas.» Mas o tratamento para o VIH/SIDA tem algumas particularidades. «Os doentes questionam-nos: “Se não me dói nada porque é que tenho de tomar medicamentos?”»
Esta pergunta nem sempre tem uma resposta fácil, pelo menos numa leitura mais imediata: «O primeiro mês de tratamento pode ser difícil. O corpo está a adaptar-se a um novo agente. E as possíveis reacções do organismo – desde vómitos a diarreias – podem ser razão mais do que suficiente para que alguns dos doentes interrompam ou desistam do tratamento», responde Cristina.
Dos 33 utentes que integram o projecto «Hospital na Comunidade», desde Abril deste ano, cinco encontram-se em toma assistida. Os restantes estão sujeitos ao regime de organização da caixa semanal. Segundo adianta Cristina, a média de idades dos doentes é de 45 anos: «Há utentes com mais de 70 anos e com menos de 20.»
Com um acompanhamento regular, os doentes recebem a visita do enfermeiro e do psicólogo. «O apoio psicológico é desenvolvido na sede ou no domicílio, desde que exista a privacidade necessária.» Os técnicos do projecto e os infecciologistas do Hospital Prof. Doutor Fernando da Fonseca explicam os objectivos do tratamento e retiram alguns receios: efeitos secundários que possam ocorrer no imediato ou a longo prazo, em particular a lipodistrofia.
No meio de um mosaico cultural tão distinto (portugueses, guineenses, cabo-verdianos, imigrantes dos países de Leste, entre outros), houve a necessidade de encontrar forma de comunicar com os utentes. «Temos pessoas que percebem mal ou simplesmente não entendem uma palavra de Português», justifica Cristina. «Mas as ajudantes africanas agilizam a comunicação», fundamenta.
A saúde em primeiro lugar
Uma das valências deste projecto, para além do destaque na adesão terapêutica, é a formação e educação para a saúde. Os doentes sabem que, mesmo sem sintomas, o perigo de a doença progredir é real. «A maioria das pessoas entende que queremos ajudá-las a manterem a sua qualidade de vida. Para muitas, este é um percurso muito solitário, e o simples facto de terem uma equipa preocupada com o seu estado de saúde, e disponível para colaborar no que for possível, leva-as a encararem a infecção de forma mais eficaz para o seu combate», adianta.
«As recusas que tivemos, poucas até à data, correspondem a pessoas que não admitem perante os outros que estão doentes e não cumprem a medicação. São pessoas que ainda não conseguiram ultrapassar a fase de negação.» No entanto, quando os doentes tentam fintar as técnicas, só há uma maneira de comprovar se os comprimidos foram efectivamente tomados. A análise é a prova dos nove. Face aos resultados, não há como negar a falha no tratamento.
Mas este não é o único obstáculo ao trabalho dos profissionais da AJPAS. Cristina admite que, no início deste projecto, teve algumas «pedras» no caminho. «Houve doentes que se recusaram a abrir-nos a porta. E não nos podemos impor nem forçar a entrada, mas não desistimos. Vamos ligando na esperança de que a pessoa venha a aceitar a nossa visita e o nosso apoio. Além disso, o respectivo médico e os enfermeiros do serviço do hospital vão reforçando, junto destas pessoas, a necessidade do apoio na organização da terapêutica.»
O tratamento anti-retroviral, contínuo e sem falhas, «é essencial para a manutenção de um bom estado de saúde», completa a Dr.ª Célia Carvalho. «Portanto, deixar de tomar os comprimidos, por esquecimento ou por auto-recriação, é um motivo para desenvolver resistências aos medicamentos», justifica.
Um projecto «sobre rodas»
Antes de saírem para qualquer ronda, os técnicos do «Hospital na Comunidade» ligam a alguns utentes para confirmar se estão em casa. Depois de porem «pés ao caminho» vão percorrendo as casas dos doentes, uma a uma. Sendo ainda um número reduzido de utentes, a visita semanal para entrega da medicação ocorre apenas num dia da semana. Trata-se de uma forma de «rentabilizar recursos, humanos e financeiros», já que na deslocação é utilizada a carrinha do projecto. «Esta é uma rotina diferente da toma assistida – esta última obriga a uma deslocação diária.»
Se, hoje em dia, esta tarefa já está incutida no dia-a-dia dos doentes, nem sempre assim foi. «No início do projecto, alguns dos utentes resistiram muito à nossa intervenção. Insistiam que não precisavam que ninguém fosse a casa entregar a medicação. E diziam que tomavam os comprimidos sozinhos», fundamenta Cristina. A estratégia utilizada foi explicar que os técnicos são «elementos facilitadores» do tratamento e do acompanhamento do seu estado de saúde.
«Acima de tudo, tentamos que as pessoas conheçam bem a infecção, que saibam quais os efeitos secundários possíveis e, principalmente, as vantagens da terapêutica. Felizmente, os anti-retrovirais têm evoluído muito positivamente: os efeitos secundários e o número de comprimidos diários são cada vez mais reduzidos», indica.
Cristina, uma das psicólogas da AJPAS, acredita que o trabalho do projecto «Hospital na Comunidade» ajuda a criar rotinas e a incutir hábitos de vida saudáveis. É essa a função dos técnicos. «A determinada altura, a toma da medicação entrará na rotina diária destas pessoas e o esquecimento, enquanto causa das falhas na medicação, será um problema superado. As outras causas vão, igualmente, sendo trabalhadas por nós, com os utentes» Daí que as ajudantes do projecto não se limitem a entregar os comprimidos. Até porque, ironiza Cristina, «isso é tarefa do carteiro». É necessário «conversar com as pessoas, ouvi-las e dar resposta, em tempo útil, às suas dúvidas e preocupações».
Estratégias discutidas semanalmente
Para a psicóloga Cristina, a entrega dos fármacos dentro de uma caixa tem a enorme vantagem de não expor o nome da medicação. Sempre que alguém questione para que serve a caixa de medicamentos, «os utentes podem dizer que é para qualquer patologia», aponta. «A medicação mensal fica na associação. Com base na prescrição médica, organizamos as caixas semanais. As cores ajudam os utentes, com maiores dificuldades, a reconhecer o período do dia e os dias da semana em que a medicação tem de ser tomada.»
O trabalho dos profissionais que integram o projecto «Hospital na Comunidade» é intenso. O acompanhamento e a vigilância terapêuticas dos doentes implicam alguma ginástica. «Tentamos ajustar a entrega da medicação ao ritmo de vida da pessoa, de forma a não interferir com o trabalho ou outros afazeres. A nossa intervenção tem de ser facilitadora e não causadora de mais transtornos. Sempre que necessário, os utentes podem levantar a medicação na associação, porque estamos abertos até à hora que for necessário. No entanto, este não é um local de atendimento público, nem de porta aberta.»
Para além deste trabalho, o projecto também tenta ajudar os utentes com necessidades de apoio social e apoio na regularização da situação no País, no caso dos imigrantes, encaminhando--os para outro projecto da AJPAS, de apoio domiciliário e psicossocial dirigido a pessoas infectadas pelo VIH/SIDA, projecto «Viver com o VIH», com 11 anos de existência.
Todo o plano de intervenção com cada um dos utentes é discutido, nas reuniões semanais, com a coordenadora, psicólogo, enfermeiros e ajudantes de acção directa. Uma vez por mês, a reunião conta com toda equipa do projecto, juntando-se o médico e os dois directores técnicos, um da AJPAS e outro do Hospital Prof. Doutor Fernando da Fonseca.
Um hospital em movimento
A enfermeira Alexandra Costa, do Hospital Prof. Doutor Fernando da Fonseca, não tem dúvidas de que este projecto permite ter uma outra noção da realidade dos utentes. «Quando vamos para o terreno, temos a percepção das condições habitacionais dos doentes na comunidade. E essa experiência tem-se revelado muito enriquecedora.» Fora das quatro paredes do hospital, os enfermeiros encontram ferramentas para comunicarem mais eficazmente com os doentes no Hospital de Dia de Infecciologia.
O papel do enfermeiro, durante as visitas domiciliárias do projecto «Hospital da Comunidade» é «motivar para a adesão terapêutica». E mais ainda: «desmistificar alguns receios infundados». Por um lado, garante, o papel do enfermeiro em casa dos doentes está mais facilitado: «não há o peso do hospital, nem fardas». Segundo Alexandra Costa, os doentes «demonstram maior à-vontade».
Para a enfermeira, que já contactou com doentes que vivem em condições «inóspitas», os doentes por vezes não cumprem a terapêutica porque lidam com «imensas dificuldades no quotidiano». E, a este propósito, conta a história de uma mulher que resistiu a tomar a medicação, porque isso a poderia privar de trabalhar: a única fonte de rendimento que tem para alimentar o filho. Mas Alexandra Costa tranquiliza os utentes, garantindo que «há medicamentos que aliviam estas fases».
Para que os doentes cumpram a terapêutica, não se pode mudar a sua rotina. «Temos de encontrar esquemas de integração dos comprimidos no dia-a-dia dos doentes», aponta. E, neste aspecto, o projecto «Hospital na Comunidade» tem todo o mérito por conseguir aplacar algumas dificuldades: «Às vezes, nem fazemos ideia que, para um doente, levantar a medicação no hospital pode ser muito complicado. A compra de um bilhete de comboio ou autocarro pode não estar ao alcance de alguns doentes, porque algumas populações de utentes infectados são muito carenciados.»