Em 1985, Rui Sarmento e Castro foi um dos primeiros médicos portugueses a ter em mãos um doente com VIH/SIDA.
Prof. Doutor Rui Sarmento e Castro: «Há 21 anos, quando recebi o primeiro doente, senti que estávamos perante uma catástrofe.»
O Prof. Doutor Rui Sarmento e Castro é presidente do Conselho de Administração do Hospital de Joaquim Urbano, no Porto, e presidente da Sociedade Portuguesa de Doenças Infecciosas.
Começou a trabalhar em Medicina há 26 anos. Um ano depois, o mundo era surpreendido ao ter de lidar às cegas com os primeiros casos de infecção VIH/SIDA. Em 25 anos, de uma estranha doença que afectava a comunidade homossexual, nos Estados Unidos, a epidemia alastrou globalmente e não pára de crescer, como relatam os dados mais recentes da Organização Mundial de Saúde.
Em 1985, Rui Sarmento e Castro foi um dos primeiros médicos portugueses a ter em mãos um doente com VIH/SIDA. Aconteceu o inevitável. «Sobreviveu seis meses e depois veio a falecer». Hoje, com os tratamentos disponíveis, no mundo desenvolvido, a infecção assume outro estatuto: é crónica e não necessariamente mortal. Mas em África, por exemplo, a doença grassa como nos primeiros tempos. Nesta entrevista, Rui Sarmento e Castro confessa, sobre a experiência pessoal, nestes 25 anos «o que mais me custou foi ver morrer crianças».
Informação SIDA® – O VIH/SIDA mudou o planeta em que vivemos?
Prof. Doutor Rui Sarmento e Castro – Acredito que sim, porque até este momento a SIDA infectou 60 milhões de pessoas das quais 25 milhões já faleceram. Estão vivas cerca de 40 milhões. Em termos da investigação, o isolamento do vírus e os conhecimentos adquiridos foram muito importantes.
Há muitas coisas que a descoberta do vírus nos concedeu. Depois, por outro lado em termos de cuidados de saúde, obrigou, pelo menos nos países desenvolvidos, a criar estruturas importantes para a combatê-lo. Quanto aos custos, o VIH introduziu problemas extremamente graves.
Eu acho que nós poderíamos traduzir a relevância do vírus, se pensássemos como há cinco anos, por exemplo, que quer o presidente Bill Clinton, quer o Conselho de Segurança da ONU, consideraram esta infecção como ameaça principal à segurança mundial. Claro que o panorama na luta contra esta infecção é completamente diferente na Europa e nos Estados Unidos do que, por exemplo, em África ou no Sudeste Asiático.
Por exemplo em África, o impacto desta infecção tem sido terrível. Com a diminuição da sobrevivência média das populações, do PIB por causa exactamente da redução da mão-de-obra, com o crescimento enorme do número de órfãos, com a falta de cuidados médicos… o impacto da epidemia é desolador.
IS – Se pudesse definir a evolução da situação portuguesa nestes 25 anos que passaram desde os primeiros diagnósticos, como poderia fazê-lo numa breve síntese, atendendo à sua carreira nesta área?
RSC – Sob o ponto de vista técnico nós estamos ao nível de qualquer outro país desenvolvido. Utilizamos as mesmas técnicas, os mesmos medicamentos e, globalmente, acho que os técnicos estão bem preparados para enfrentar a situação. Houve alguma falha, mais por questões culturais do que outras, na prevenção. Isto é, Portugal não conseguiu fazer boas campanhas de prevenção ou não conseguiu fazer penetrar na sua população algumas ideias que eram importantes. Nesse aspecto, Portugal está atrasado. A prevenção noutros países tem sido mais eficaz.
IS – Em que sectores da sociedade considera verificar-se essa falha?
RSC – Acho que em todos. Mas o sector mais afectado é o dos heterossexuais. A infecção começou por atingir, nos países desenvolvidos, os homossexuais e esses, apesar de tudo, compreenderam que estavam perante uma ameaça séria. Nos toxicodependentes, em Portugal fez-se um rastreio importante e hoje o número que aparece infectado é proporcionalmente menor. Os heterossexuais, que são a imensa maioria da população, não perceberam que estávamos perante um perigo sério e o que acontece neste momento é que 55% dos novos casos em Portugal correspondem a essa franja da população.
IS – O que estava a fazer há 25 anos?
RSC – Ainda não estava no Hospital de Joaquim Urbano. Apesar disso, fui o médico que recebeu e tratou o primeiro doente aqui no hospital em 1985, um dos primeiros 10 doentes que houve em Portugal. A minha experiência vem desde aí. Em 1981 eu estaria, provavelmente, a fazer um estágio qualquer de Medicina Interna.
IS – Desse primeiro caso, nessa altura, quais foram os problemas com se debateu? Que tipo de dúvidas tinha?
RSC – Dúvidas, nesse tempo, tinha-as todas. Em Portugal não havia praticamente experiência. Nem sequer havia o hábito de fazer reuniões e trocar experiências entre especialistas. Esse doente chegara do Brasil, era homossexual, infectado mas se hoje chegasse aqui teria vivido muitos anos. Então, há 21 anos, por falta de conhecimentos e de meios, o doente viveu cerca de seis meses e veio a falecer. Dávamos os primeiros passos e estávamos a aprender.
IS – O que é que pensavam que tinham em mãos?
RSC – Pensávamos que tínhamos ali o início de uma catástrofe. Nem sequer havia perspectiva de qualquer tipo de tratamento dirigido ao vírus. Tratávamos as infecções associadas e algumas não estávamos habituados. Não eram infecções comuns, mas fazíamos o possível por tratarmos essas infecções oportunistas da melhor forma. Para o vírus, nada havia. Em 85 não havia qualquer perspectiva de fármacos em desenvolvimento para esta área. Não havia armas.
IS – Em 1984 chegou a ser anunciado, com muita confiança, que em dois anos haveria uma vacina e que os problemas se resolveriam. Acha que vão passar mais 25 anos até que a tal vacina ou a cura sejam encontradas?
RSC – Não acho que demore 25 anos, mas também não acredito que apareça uma vacina senão daqui a cinco, seis, sete anos. Não me parece que seja possível tão cedo.
IS – Explique o que o leva a tirar essa conclusão.
RSC – O problema fundamentalmente – e essa é uma das derrotas da nossa luta contra o VIH – é a capacidade de mutação do vírus, que é muito elevada. Isso impede a criação de uma vacina eficaz que possa responder a essas mutações. É um pouco o que se passa com o vírus da gripe, só que a uma escala muito maior. Nestas condições, a construção de uma vacina para o VIH/SIDA seria económica e até tecnicamente impossível. De qualquer forma, estão a ser realizados alguns ensaios e para uma parte dos vírus pode ser que seja possível fazer-se uma vacina eficaz. De momento, não é.
IS – Em 25 anos a infecção passou de altamente mortal, para uma doença que já é considerada crónica. É mesmo assim? Ou há polémica nessa afirmação?
RSC – Sem dúvida nenhuma, mas quando falamos nos países desenvolvidos. Em África, a situação é quase igual à que existia no princípio da epidemia. Se abordarmos a situação dos Estados Unidos ou da Europa, não há dúvida que há 25 anos a doença matava muito rapidamente. Hoje, os doentes sobrevivem muitíssimo mais tempo.
Há 10 anos obtivemos uma grande vitória, que foi o aparecimento de fármacos com uma eficácia muito maior. Foram os chamados inibidores da protease. Dois anos depois apareceu um outro grupo também importante nesta matéria. Mas, em 2005 e 2006, surgiram e estão em desenvolvimento meia dúzia de fármacos que permitem ainda ganhos maiores.
Isto é, mesmo naqueles doentes que nós considerávamos perdidos, em que já não conseguíamos baixar a chamada carga vírica para valor inferior a 50 cópias é hoje possível obter resultados animadores. Hoje estão a ser produzidos fármacos que permitem que nesses doentes se verifiquem melhorias.
Em cerca de 30% dos casos, os chamados doentes muito experimentados já conseguem ter negativa a carga vírica. Está agora em experimentação um novo fármaco que consegue tornar esses doentes negativos em mais de 50% dos casos. Portanto, de certo modo, em termos de terapêutica, os anos de 2005 e 2006 são também um marco, na minha opinião.
IS – Começou a trabalhar na carreira médica há 26 anos. Um ano depois, revelavam-se os primeiros casos da infecção VIH/SIDA. Esse facto teve algum peso na escolha da sua especialidade?
RSC – Quando fiz opção, em Portugal ainda não se conhecia a doença. Havia nos Estados Unidos. Optei pelas doenças infecciosas. Víamos hepatites, meningite, tétano, febre tifóide... Escolhi na altura uma especialidade em que nós tratávamos os doentes e curávamo-los rapidamente.
Era uma especialidade grata, porque os resultados das nossas atitudes terapêuticas eram visíveis a curto prazo. Ou morriam, e felizmente morriam poucos, ou curávamos rapidamente os doentes.
Um ano depois de ter entrado para a especialidade aparece exactamente o primeiro doente de SIDA e depois o número foi crescendo sempre. É claro que mudou muito a especialidade. Hoje em dia nós temos muito menos casos de patologia clássica e muito mais casos de infecção VIH/SIDA.
IS – Essa realidade mudou a sua vida?
RSC – Naturalmente que sim, porque sou especialista em doenças infecciosas mas com uma componente muito importante na infecção VIH/SIDA. Mudou até a especialidade, no fundo.
IS – Nestes 25 anos de VIH/SIDA, o que lhe tocou mais?
RSC – Foi ver morrer crianças, como compreende. Foi ver morrer os doentes em geral, mas particularmente as crianças. Tocava-me sempre muito. Eram geralmente crianças que não tinham feito rigorosamente nada para estarem infectadas. Eram infecções transmitidas pelos pais e infelizmente, sobretudo nos primeiros casos, nós não conseguíamos fazer nada e as crianças morriam ao fim de alguns meses. Hoje em dia a perspectiva já é diferente. Nós, aqui no serviço, seguimos crianças desde que nasceram e que hoje que têm 10, 12 anos. Por outro lado, sinto--me compensado porque está viva muita gente que não esperaríamos que estivesse.
Texto: David Carvalho