Artigo de Informação SIDA®
Nº 58 / Setembro de 2006
26 O retrato do internamento nos doentes com VIH/SIDA
De acordo com o Prof. Francisco Antunes, director do Serviço de Doenças Infecciosas, do Hospital de Santa Maria, «em condições ideais, não deveríamos ter nenhum doente internado».
Falar de doentes internados com infecção pelo VIH/SIDA, para alguns deles, é falar da morte próxima. O internamento está associado às infecções oportunistas, incluindo a hepatite C, e às complicações da terapêutica, nomeadamente a toxicidade e as doenças cardiovasculares.
O atraso no diagnóstico e no tratamento das doenças associadas à infecção pelo VIH/SIDA pode significar a morte, uma vez que a Medicina, quer nestas, quer noutras doenças, tem as suas limitações.
Mas qual é a situação actual e quem são os doentes internados?
De acordo com o Prof. Francisco Antunes, director do Serviço de Doenças Infecciosas do Hospital de Santa Maria, «as coisas mudaram muito e diria que poderiam mudar ainda mais».
Alguns dos doentes, muito poucos, não respondem ao tratamento, de acordo com as expectativas, e, por outro lado, alguns dos medicamentos disponíveis têm efeitos colaterais que limitam a qualidade de vida dos doentes.
Ainda assim, tem havido, nos últimos anos, importantes progressos na terapêutica anti-retrovírica, quer no que diz respeito à sua eficácia, quer, ainda, no que refere à tolerância e à toxicidade. Deste modo, pode afirmar-se que dispomos, actualmente, de mais medicamentos, mais eficazes e melhor tolerados do que aqueles que utilizávamos há 10 anos.
Por isso, «em condições ideais não deveríamos ter, neste momento, nenhum doente internado no Serviço de Doenças Infecciosas, mas, apenas, em seguimento no ambulatório», refere Francisco Antunes, acrescentando:
«Mas o mundo real não é este. No mundo real há infectados que desconhecem a sua condição de portadores do VIH, apesar de terem comportamentos de risco, incluindo os toxicodependentes, e que procuram assistência médica já numa fase muito avançada, com SIDA, não acreditando que a infecção pelo vírus da SIDA lhes pode bater à porta. E há outros doentes que não aderem ao tratamento que lhes é prescrito, evoluindo como se não estivessem a ser tratados.
No caso dos toxicodependentes, há o risco acrescido pelo consumo de drogas e pela partilha de seringas e agulhas. Este risco foi reduzido com a campanha de trocas de seringas e agulhas.»
É esta população, dos toxicodependentes e dos que não acreditam que a infecção do VIH/SIDA pode atingir qualquer um (basta ter relações sexuais não protegidas), que constitui o principal grupo dos doentes internados, por VIH/SIDA, no Serviço de Doenças Infecciosas do Hospital de Santa Maria, que desconhecem da sua condição de seropositividade. Para além destes, há ainda que contar, como já foi referido, com aqueles que não cumprem a terapêutica, ou seja, aqueles com fraca adesão à prescrição dos anti-retrovirais.
Para Francisco Antunes, «não basta prescrever. É preciso que do outro lado (por parte dos doentes) a prescrição seja rigorosamente cumprida. Não havendo cumprimento, tal leva a falências sucessivas ao tratamento, o que condiciona a evolução para desagregação do sistema imunitário e para a SIDA».
As falências sucessivas da terapêutica condicionam a evolução natural para a SIDA. Por outro lado, para além de não beneficiarem do tratamento, estão sujeitos à menor tolerância à medicação e ao risco de desenvolverem resistência a todos os anti-retrovirais disponíveis.
Outros doentes, os seguidos há muitos anos, não tiveram, logo de início, acesso à terapêutica anti-retroviral potente e acabaram, não por culpa própria, por sofrer da pouca eficácia dos medicamentos disponíveis na época.
Estes são doentes que começaram com a monoterapia – AZT – e depois fizeram a biterapia, com o AZT – mais outro anti-retroviral. Tal condicionou resistências sucessivas, dado hoje saber-se que «a monoterapia não funciona e que a biterapia funciona mal. O que funciona bem, quando os doentes têm uma boa adesão, é o tratamento com três ou mais anti-retrovirais. Ora acontece que estes doentes, apesar de terem tido uma boa adesão, tiveram falências terapêuticas sucessivas e, nesta altura, apesar de terem sobrevivido, pelo acesso que tiveram àqueles anti-retrovirais, estão numa fase em que são, praticamente, resistentes a todos os anti-retrovirais», salienta o especialista, acrescentando:
«No entanto, há a esperança de que alguns dos anti-retrovirais, que estão em fase de investigação, possam, eventualmente, num horizonte próximo, ultrapassar essa condição de multirresistência. São estes os novos anti-retrovirais que se têm revelado potentes e eficazes para o tratamento destes doentes com VIH multirresistentes.»
Finalmente, é preciso salientar a importância da co-infecção com o vírus da hepatite C, e dos problemas associados à falência hepática, com desenvolvimento da cirrose e, em último caso, do carcinoma do fígado. No entanto, actualmente, este problema também está em vias de ser ultrapassado, com a utilização de medicamentos mais potentes para o tratamento da hepatite C nos co-infectados pelo VIH/SIDA, que apresentam uma boa resposta à terapêutica, permitindo-lhes uma expectativa de vida igual à dos não co-infectados.
Deste modo, em internamento, encontram-se doentes que nunca foram tratados, com anti-retrovirais, doentes que foram tratados e não tiveram adesão ao tratamento, doentes que estão co-infectados pelo vírus da hepatite C e em fase adiantada da sua doença hepática, alguns deles, apesar de controlados do ponto de vista da infecção por VIH, e, finalmente, doentes com multirresistências, devido à medicação menos eficaz disponível antes de 1996.
«Não existe redução de 70% do número de doentes internados com infecção VIH/SIDA, como se esperaria, com a introdução das novas terapêuticas, mas aquela diminuição anda à volta dos 50% a 60%. Antes de 1996, dos doentes que eram seguidos no Serviço de Doenças Infecciosas, no Hospital de Dia, a mortalidade anual era de 3-4%. Actualmente, a mortalidade dos doentes seguidos em Hospital de Dia é inferior a 1%. Os doentes de maior risco são aqueles que não beneficiaram dos avanços recentes no diagnóstico, na monitorização e na terapêutica da infecção VIH/SIDA.»
A adopção das medidas preventivas
Infelizmente, os êxitos alcançados com a terapêutica anti-retroviral não têm ainda a respectiva correspondência no campo da prevenção.
«Existe um atraso muito grande. Não é aceitável nos tempos que correm que não haja uma adopção universal das medidas de prevenção bem conhecidas de todos, da utilização de preservativos e de agulhas e seringas descartáveis (não reutilizáveis)», salienta o director do Serviço de Doenças Infecciosas do Hospital de Santa Maria.
Todos conhecem quais são as medidas preventivas, têm a informação, mas falta a iniciativa de, em cada momento de risco potencial, adoptarem essas mesmas medidas.
«Muitos continuam a não acreditar que o que acontece aos outros também lhes possa acontecer. A SIDA é um monstro mortal, mas o que está à vista é um homem ou uma mulher belos, que podem esconder, no seu passado, múltiplos comportamentos sexuais de risco.»
Além disso, esta infecção tem uma grande armadilha, isto é, até quase estádios finais da sua evolução para SIDA e para a morte, tudo se passa de uma forma perfeitamente inaparente, sem sintomas ou sinais de doença.
Segundo Francisco Antunes, «cada vez mais assistimos a mulheres, na casa dos 50 anos, surpreendentemente infectadas pelo vírus da SIDA, alegando que nunca tiveram comportamentos de risco e que são monogâmicas. Elas foram, durante anos, parceiras sexuais de homens infectados com comportamentos poligâmicos, que não se protegeram com preservativos».
No fundo, há uma série de factores na nossa sociedade, alguns deles bem conhecidos, que tornam problemática a eficácia das campanhas de prevenção da infecção VIH/SIDA, como é o exemplo, o recurso à utilização do preservativo.
A assistência aos doentes infectados pelo VIH/SIDA
Ao nível da capacidade de resposta à epidemia VIH/SIDA, em Portugal, o Prof. Francisco Antunes espera que, rapidamente, os avanços na área de cuidados de saúde prestados aos doentes venham a ter a mesma dimensão na área da prevenção.
«Posso dizer que, no que diz respeito à assistência aos infectados por VIH/SIDA, em ambulatório (Hospital de Dia), estamos apetrechados, em pessoal qualificado e em meios, de acordo com os padrões internacionais, quer dos outros países da União Europeia, quer dos Estados Unidos da América, sendo, até, em algumas circunstâncias, mais rápido na resolução de alguns problemas.»
Relativamente ao internamento, há, de facto, algumas limitações. As estruturas hospitalares são muito antigas e «particularmente os Serviços de Doenças Infecciosas não estão preparados para receberem doentes crónicos. As doenças infecciosas, até ao início da epidemia VIH/SIDA, eram doenças agudas, de resolução rápida – após 10 dias de terapêutica, os doentes saíam curados.
Os doentes com infecção VIH/SIDA têm evolução crónica e há que adaptar os técnicos de saúde e as estruturas aos novos condicionamentos, como o do internamento prolongado de indivíduos jovens, alguns deles necessitando de isolamento, privando-os do relacionamento familiar e social».
Terapêutica anti-retrovírica: um marco na infecção por VIH
A introdução, na prática clínica, da terapêutica anti-retrovírica passou por duas fases. Antes de 1996 já se dispunha do AZT e de mais quatro fármacos, que foram utilizados em monoterapia ou em biterapia, mas com eficácia limitada no tempo.
Antes do AZT, estava, apenas, disponível a profilaxia das infecções oportunistas, a qual permitiu que muitos dos infectados não adoecessem por doenças oportunistas, o que teve algum peso no que diz respeito à redução da morbilidade e da mortalidade associada à SIDA.
Porém, o factor que marcou, definitivamente, o tratamento anti-retrovírico, que transformou uma condição que, invariavelmente (numa percentagem de mais de 90%), levava à morte, num período de oito a 10 anos, numa situação de infecção crónica, na maioria dos casos assintomática, foi a 2.ª geração de anti-retrovirais de alta potência, introduzidos na prática clínica depois de 1996.
«Assim, hoje estamos face a uma infecção latente, para a qual ainda não existe cura definitiva, mas com tratamento altamente eficaz. É habitual afirmar-se que depois da descoberta da penicilina, que salvou milhões de vidas, outro êxito à mesma dimensão foi a terapêutica anti-retroviral que transformou uma infecção irremediavelmente mortal numa infecção de evolução crónica, na maioria dos casos, quando correctamente tratada, perfeitamente assintomática», refere o Prof. Francisco Antunes.
Texto: Teresa Pires