Artigo de Informação SIDA®
Nº 50 / Maio de 2005
26 SIDA infantil: crianças sem culpa
Crianças sem culpa
São crianças. Alegres, brincalhonas e mesmo com alguns disparates pelo meio conseguem-nos sempre roubar um sorriso. A vida atraiçoa-nos quando estes pequenos seres são vítimas inocentes da SIDA.
Houve alguém que disse que a SIDA infantil era uma doença evitável, em cerca de 99% dos casos, e que, a curto prazo, até poderia desaparecer. Infelizmente, a realidade ainda não é essa, por motivos diversos e para os quais procuramos aqui uma resposta.
Actualmente, no Hospital de Santa Maria, na Unidade de Infecciologia Pediátrica, são acompanhadas 55 crianças com SIDA, sendo que, no País, devem existir entre 250 a 300 casos.
O primeiro caso de SIDA infantil na Península Ibérica foi identificado no Hospital de Santa Maria, em 1984. Tratava-se de uma criança que, tendo sido um bebé prematuro, foi submetido a várias transfusões de sangue. Por volta dos 3 anos de idade, aparece com um quadro de infecções recorrentes e com uma imunidade bastante deprimida. A análise do sangue, na altura realizada no Instituto Pasteur, em Paris, traz a confirmação: infecção pelo VIH.
Até aos finais dos anos 80, surgiram mais alguns casos, mas também relacionados com transfusões sanguíneas. Os casos de contágio por sangue, nomeadamente, através das transfusões, deixaram de existir em Portugal, mas «nós temos uma população de crianças africanas, entre as quais algumas foram infectadas por essa via», alerta a Dr.ª Ana Mouzinho, da Unidade de Infecciologia Pediátrica do Hospital de Santa Maria.
A partir dos anos 90, registou-se um aumento no número de diagnósticos de crianças infectadas pelo VIH por transmissão vertical (mãe-filho).
Desde a implementação do protocolo da prevenção da transmissão vertical (ACTG 096), em 1996, que não nascem bebés infectados no Hospital de Santa Maria, no grupo populacional de mães que são seguidas em Consulta de Alto Risco.
Mães que desconhecem a sua seropositividade
O problema surge quando as mães não são acompanhadas, não fazem a terapêutica ou desconhecem o facto de serem seropositivas. São três situações diferentes, mas bem reais, que contribuem para que a SIDA pediátrica seja também ela uma realidade.
Em Santa Maria, há mulheres que sabem que estão infectadas e, por isso, têm gravidezes planeadas e vigiadas, seguindo à risca o protocolo que exige um controlo muito eficaz da doença da mãe.
«Em termos do parto, a escolha de cesariana ou de parto normal depende das análises da mãe. Durante o parto, independentemente do modo como é feito, é administrada, à mãe, uma perfusão de AZT e, imediatamente a seguir ao nascimento, inicia-se também ao bebé AZT por via oral, durante seis semanas», explica Ana Mouzinho.
Todo este processo exige um grande controlo e o cumprimento de todas as exigências, sendo, no entanto, acessível em Portugal. A verdade é que, através desses métodos, pode-se baixar a transmissão materno-fetal para cerca de 1%. E é realmente o que tem acontecido nos últimos anos.
«Em Portugal, os nossos números andam à volta dos 5% na transmissão vertical, o que ainda é elevado», adverte a Dr.ª Filipa Prata, também da Unidade de Infecciologia Pediátrica do Hospital de Santa Maria, acrescentando:
«Isso acontece porque há ainda muitos casos que fogem a este protocolo; são sobretudo aquelas mães que pertencem a grupos de risco, como toxicodependentes, com gestações não vigiadas e que não cumprem a terapêutica ou casos em que não é pedida e realizada a serologia VIH.»
Não pedir a serologia VIH a uma mulher grávida é uma situação gritante. As duas médicas são concordantes em afirmar que há ainda da parte de alguns médicos relutância em pedir uma serologia às mulheres grávidas. Não se percebe a razão, mas a verdade é que, posteriormente, perde-se a possibilidade de fazer alguma coisa.
A explicação pode se encontrar na existência de tabus. Ana Mouzinho justifica-se contando um caso real:
«Temos uma criança que tem agora 6 anos. A infecção foi-lhe diagnosticada, sensivelmente, aos 2 anos. Não foi pedida serologia à mãe. E, neste caso, estamos a falar de pais licenciados. A criança nasceu e começou a apresentar um quadro de infecções, ainda que pouco graves, mas muito frequentes. Em termos de estatura, era muito pequenina, não crescia nem se desenvolvia. A médica que acompanhava esta criança, ao fim de algum tempo, chegou à conclusão de que era melhor pesquisar uma imunodeficiência, num sentido mais lato, e chegou à conclusão do que se passava realmente.»
Este era um caso que, a todos os níveis, não poderia ser classificado como sendo uma situação de risco. E daqui surge a revolta dessa mãe por nunca lhe terem pedido a serologia, o que significa que não teve qualquer palavra a dizer e opção a tomar.
As normas da Direcção-Geral de Saúde exigem duas serologias e, mesmo assim, o ideal seria três, ou seja, uma por trimestre. Isto justifica-se quando há casos de infecção fora do período em que foi pedida a serologia.
«É o pior que pode acontecer em termos de gravidade para a criança. Esta, ao infectar-se durante a gravidez (em fase embrionária), o que acontece se a mãe tem uma carga viral elevada, tem efeitos mais sérios e conduz a formas de infecção por VIH mais graves», revela Ana Mouzinho.
Nestes casos, em que se infectaram precocemente, ou seja, durante a gravidez, as crianças têm manifestações muito variadas, incluindo alterações no Sistema Nervoso Central, ficando, algumas delas, com paralisia cerebral do tipo motor. Do ponto de vista cognitivo, apresentam-se, na sua maioria, intactas.
Manifestações na criança
Ao bebé que nasce, cuja mãe é seropositiva, faz-se uma análise PCR (polimerase chain reaction), nas primeiras 48 horas de vida. Se esta for positiva, dá uma indicação bastante precisa se a criança se infectou durante a gravidez.
Esta análise repete-se depois, no fim do primeiro mês e, novamente, aos quatro meses. Só ao fim das três análises negativas é que é possível dizer-se que a criança não foi infectada.
«Desta forma, por volta dos cinco meses é que conseguimos ter garantias. Esta é uma nova tecnologia que há alguns anos era inexistente. Na altura, tinha de se esperar para ver o que acontecia à criança, nomeadamente, se estava bem, do ponto de vista clínico, e se perdia, ou não, os anticorpos maternos. De alertar que, na gravidez, há anticorpos da mãe que passam para a criança. Assim, após o nascimento, a criança traz anticorpos que vai perdendo até aos 2 anos.», comenta Ana Mouzinho.
Normalmente, as crianças que têm infecção VIH apresentam, na maioria, sintomas, antes do ano de idade. São infecções vulgares, que, no início, podem ser constipações comuns a outras crianças, mas que acabam por ter um desenvolvimento fora do padrão normal e com alguma gravidade. Além disso, perdem peso, crescem mal, têm manifestações, muitas vezes, ao nível da pele, entre outros sintomas.
No entanto, há um grupo de crianças que pode passar anos sem ter qualquer tipo de manifestações.
«Temos uma criança cuja mãe tinha uma serologia positiva durante a gravidez e omitiu esse facto ao médico. Havia um pouco de ignorância por parte da mãe, que achou que não tinha muito importância revelar a sua seropositividade. Essa criança tem agora cerca de 7 anos e nunca teve nada (até hoje!). Por insistência do médico, uma vez que o pai e a mãe estão infectados, acabaram por fazer análises à criança e verificou-se que, realmente, a criança também está infectada. Actualmente, esta criança é vigiada mensalmente, já que em qualquer altura pode desenvolver infecções graves.»
Terapêutica em pediatria
Anteriormente, a criança só tinha disponível dois fármacos com aprovação pediátrica. Primeiro apareceu o AZT e depois o DDI. Por volta de 1995 surge um outro fármaco e só a partir de 97 é que começaram a aparecer cada vez mais e novos medicamentos. Portanto, se antes as opções terapêuticas eram praticamente inexistentes, uma vez que não havia combinações de medicamentos, hoje já é possível ter um leque mais alargado de recomendações para o tratamento e seguimento destas crianças.
Quando a infecção é diagnosticada no primeiro ano de vida, Filipa Prata afirma que, «normalmente, significa que a criança não tem o diagnóstico apenas porque fez análises, mas sim porque já está mesmo doente. Por isso, ela necessita de tratamento. São casos de crianças pequenas que têm cargas virais que os médicos que seguem adultos nunca viram – vários milhões de cópias por centímetro cúbico».
Essa replicação viral nas crianças exige, sem qualquer tipo de dúvida, tratamento.
Ana Mouzinho explica-nos que o grande desafio que se coloca é «a administração de terapêutica a uma criança pequena, que implica dar, pelo menos duas vezes ao dia, uma enorme quantidade de medicamentos, nomeadamente três anti-retrovirais e mais um antibiótico no primeiro ano de vida para prevenção de outras infecções. Outras vezes, é necessário acrescentar ainda mais fármacos»
Posteriormente, torna-se difícil assegurar que as mães administrem todos esses medicamentos à criança. É preciso introduzir um novo hábito quotidiano na vida daquelas pessoas, que necessitam de todo o apoio e persistência.
Uma rotina que se repete mais do que uma vez ao dia e que
se prolonga para a vida.
No internamento, as enfermeiras têm muita prática e começar com os mais pequeninos é sempre mais fácil porque não questionam e acabam por interiorizar esse costume na sua vida diária.
Aumento da sobrevivência das crianças com VIH
A eficácia da medicação é tão grande que, em 1998, «a sobrevivência média das nossas crianças era de quatro anos. Após cinco anos, com a introdução destes novos anti-retrovirais era de doze anos, quase treze anos», salienta Ana Mouzinho.
Com o aumento da taxa de sobrevivência, as crianças deixam de ser crianças e já são adolescentes ou jovens, como uma rapariga de 19 anos que ainda faz parte da consulta. O que acontece é que as crianças mais velhas passam a ter a patologia do adulto. Isso implica um acompanhamento e um apoio a outros níveis.
«Começamos a ter de lidar com outro tipo de assuntos, como problemas de colesterol e triglicéridos, por exemplo. Os inibidores da protease, fármacos utilizados quer nas crianças, quer nos adultos, são fármacos bastante potentes que vieram alterar o espectro desta doença. Mas trazem outros efeitos ao nível do metabolismo dos lípidos. Nós temos crianças com valores muito elevados. Isso significa que podemos estar a mantê-las vivas, por um lado, mas a desencadear complicações coronárias, que podem, no futuro, ser fatais», diz-nos Filipa Prata.
Evitar este cenário é dobrar os cuidados, o que implica manter esse adolescente ou jovem adulto clinicamente bem e com as análises da sua doença estabilizadas. Ao mesmo tempo, tenta-se aplicar outras medidas, nomeadamente a dietética e a ginástica.
Uma batalha social
Mas, para além de tratar e medicar, estas profissionais de saúde ocupam-se ainda de outras questões, mais especificamente com o que rodeia essas crianças: a família, a escola e a própria sociedade.
É uma tarefa que desgasta porque os obstáculos são gigantes, muitas vezes, baseados em crenças erradas e na simples ignorância.
Muitas das crianças não têm pais e vivem com as avós. Outras, a escola rejeita-as. Nas consultas também surgem problemas. Filipa Prata conta que não é uma nem duas vezes que pais faltam às consultas com as crianças.
«Telefonamos para saber o que se passou e ouvimos do outro lado que não lhes foi possível porque não tinham dinheiro para os transportes. Com esta informação, tentamos falar com a assistente social para arranjar dinheiro para esses pais virem à consulta. Outros casos são pais que abandonam as crianças, que não lhes administram a terapêutica. Para além disso, as escolas continuam a não aceitar estas crianças e, deste modo, temos de organizar sessões de formação e esclarecimento nas próprias escolas, mantendo sempre o direito à privacidade dos menores e das respectivas famílias. Há todo um ambiente envolvente que temos de ser nós a tratar.»
Ana Mouzinho acrescenta ainda os problemas psicológicos: «Os pais sofrem grandes oscilações entre a negação e a aceitação. Mesmo a nível da motivação, há necessidade que esta seja, assiduamente, estimulada.»
No geral, são situações perante as quais não podemos ficar indiferentes e a revolta cresce quando é a vida de uma criança que está em causa. A angústia também está presente e, por isso, diariamente, batalha-se numa luta que parece não ter fim.
Texto: Teresa Pires
CAIXA
Um exemplo de luta
Tem 19 anos e desde os 7 que é acompanhado na Unidade de Infecciologia Pediátrica do Hospital de Santa Maria. Não quer passar para a consulta dos adultos. Diz que há-de ir... quem sabe, um dia. Neste momento, falta-lhe uma disciplina para completar o 12.º ano e já pediu o atestado médico para tirar a carta de condução.
É um rapaz que tem uma série de projectos. O mais recente é a compra de uma casa. Para isso precisa de um exame médico e o empréstimo, muito garantidamente, será recusado. Vai ser uma decepção para quem combate a doença diariamente, para quem tem dois empregos e vive um dia de cada vez. Enquanto pode, quer concretizar sonhos, sem ter qualquer tipo de entraves. Mas, por vezes, os entraves surgem do exterior e não de quem tem de conviver com a realidade cruel de ser seropositivo.