Artigo de Informação SIDA®
Nº 50 / Maio de 2005
18 Respostas discordantes à terapêutica anti-retroviral
- Prof.ª Doutora Ana Espada de Sousa
Prof.ª Doutora Ana Espada de Sousa
Unidade de Imunologia Clínica
Instituto de Medicina Molecular
Faculdade de Medicina de Lisboa
A terapêutica anti-retroviral tem por objectivo suprimir a replicação viral e permitir uma subsequente reconstituição imunológica, que se traduz num aumento no número de linfócitos T CD4+ circulantes.
Actualmente, utilizam-se esquemas terapêuticos que associam três ou mais fármacos e que, dada a sua eficácia na diminuição da viremia, bem como da mortalidade e morbilidade associadas à infecção por VIH-1, foram designados por HAART – Highly active anti-retroviral therapy.
No entanto, a expectativa inicial de erradicação viral através da terapêutica HAART foi posta em causa uma vez que se observa um aumento rápido da viremia quando a terapia é interrompida, mesmo após vários anos de viremias indetectáveis sob terapêutica. Está hoje bem-documentado que mesmo as combinações anti-retrovirais mais eficazes não inibem completamente a replicação viral. A existência de reservatórios virais de difícil acesso aos fármacos, de que são exemplo o sistema nervoso e o aparelho genital, contribuem para uma replicação viral persistente mesmo sob terapia.
Por outro lado, os linfócitos T CD4+, que são o alvo preferencial da infecção pelo VIH, quando se diferenciam em linfócitos de memória, podem permanecer quiescentes por longos períodos sem replicação viral activa e sem exprimirem proteínas virais à sua superfície, escapando assim à acção dos fármacos e ao sistema imunitário. Os dados existentes sugerem que estes linfócitos de memória quiescentes que têm o vírus integrado no seu DNA constituem um importante reservatório do vírus. As modelizações matemáticas efectuadas estimaram que, dada a longa semivida destas células, seriam necessários cerca de 60 anos de HAART eficaz para se conseguir a erradicação viral. Assim, actualmente, não é possível descontinuar as terapêuticas anti-retrovirais.
A eficácia desta terapêutica é geralmente avaliada pela resposta virológica através da quantificação da carga viral plasmática e pela recuperação imunológica estimada pela recuperação da depleção de linfócitos T CD4+ circulantes.
Os casos de falência da terapêutica anti-retroviral da infecção pelo VIH-1 devem-se, na sua maioria, a falência virológica por aquisição de resistências virais à acção dos fármacos, a que se associa falência imunológica, ou seja, ausência de recuperação da imunodeficiência associada ao VIH-1.
Contudo, em alguns doentes documentam-se respostas discordantes à terapêutica HAART, que colocam problemas de decisão clínica difíceis.
Assim, nalguns doentes observam-se recuperações continuadas do número e função dos linfócitos T CD4+ circulantes na presença de falência virológica.
Curiosamente, estudos recentes sugerem que o risco de progressão clínica nestes casos não parece ser significativamente diferente do observado nos casos em que ocorre uma resposta imunológica em paralelo com uma resposta virológica eficaz.
Por outro lado, em 8 a 17% dos doentes, conforme as séries, documenta-se uma falência imunológica, traduzida numa ausência de subida do número de linfócitos T CD4+ circulantes, apesar de uma resposta virológica eficaz. Esta situação parece ser mais frequente em indivíduos com idade avançada e contagens iniciais de CD4 baixas, sugerindo que a situação do sistema imunitário à data de início da terapêutica tem um papel determinante.
No estudo EUROSIDA, 29% dos indivíduos que iniciaram tratamento com menos de 350 linfócitos T CD4+ /μl e que após seis a 12 meses tinham viremias indetectáveis não apresentaram uma resposta de CD4 significativa. Têm sido sugeridos vários possíveis contributos para esta incapacidade de recuperação imunológica, nomeadamente défice da produção de novo de linfócitos T e persistência de níveis elevados de activação do sistema imunitário.
O objectivo deste projecto é caracterizar possíveis mecanismos que contribuam para a ausência de reconstituição imunológica definida de acordo com o parâmetro habitualmente utilizado na prática clínica, número de linfócitos T CD4+ no sangue periférico, em doentes infectados pelo VIH-1 tratados com terapêutica tripla anti-retroviral com aparente eficácia virológica, ou seja, com viremias abaixo do limite dos testes actualmente utilizados, 50 cópias de RNA/ml. Pretende-se assim identificar possíveis alvos de intervenção terapêutica nestes doentes e/ou fornecer dados que contribuam para uma melhor definição prognóstica.
O projecto consiste num estudo transversal de doentes infectados pelo VIH-1 que estejam sob terapêutica anti-retroviral no mínimo com três fármacos, desde há pelo menos um ano; que registem viremia inferior a 50 cópias de RNA/ml em pelo menos duas determinações sucessivas; que apresentem uma contagem de linfócitos T CD4+ no sangue periférico inferior a 300 céls/μl após um ano de terapêutica e/ou subida de número de linfócitos T CD4+ circulantes inferior a 50 céls/μl em relação aos valores antes do início da terapêutica; e que apresentem uma ausência clínica de infecções oportunistas ou tumores na data do estudo.
Posteriormente, os resultados gerados serão comparados com os obtidos em indivíduos saudáveis com a mesma distribuição etária, em doentes infectados pelo VIH-1 que apresentem os mesmos níveis de contagem de linfócitos T CD4+ circulantes e que ainda não tenham iniciado terapêutica anti-retroviral e em doentes infectados pelo VIH-1 tratados com anti-retrovirais que, em paralelo com o controlo da carga viral, apresentem uma resposta imunológica com subida das contagens de linfócitos T CD4+ superiores a 100 células/μl.
Serão estudados vários parâmetros imunológicos. A caracterização da reconstituição imunológica após terapêutica HAART revelou que logo após o início da terapia se verifica um rápido aumento do número de linfócitos T CD4+ e T CD8+ no sangue periférico compostos essencialmente por células memória/efectoras (previamente expostas a antigénios) provenientes de uma redistribuição celular com chamada para o sangue periférico de células que se encontravam retidas no tecido linfóide. Segue-se uma fase em que o aumento das células parece ser devido à proliferação dos linfócitos existentes e finalmente cerca de três a seis meses após início da terapêutica observa-se geralmente um aumento progressivo de proporção de células naïve, que tem sido atribuído à produção de novo de linfócitos T pelo timo ou órgãos linfóides.
Estas diferentes populações linfocitárias que expandem durante a reconstituição imunológica podem ser melhor caracterizadas funcionalmente pelo estudo da sua capacidade de produção de citocinas como a interleucina-2 ou o interferão gama, conforme ilustrado pelo nosso grupo num estudo de reconstituição imunológica publicado no Journal of Immunology (Sousa A. E., Chaves A. F., Doroana M., Antunes F., Victorino R. M. 1999 Kinetics of the changes of lymphocyte subsets defined by cytokine production at single cell level during highly active anti-retroviral therapy for HIV-1 infection. Journal of Immunology 162: 3718-26).
A imunodeficiência associada à infecção pelo VIH1 caracteriza-se por uma activação generalizada do sistema imunitário que inclui manifestações como hiperactivação de células B, expansão clonal de linfócitos, activação de monócitos, hiperplasia do tecido linfóide. Esta activação persistente tem um papel importante na imunopatogénese do VIH e pode ser avaliada através da expressão pelas células de moléculas que resultam da activação celular. A activação imunitária está associada com a progressão clínica para a SIDA e morte nos indivíduos infectados pelo VIH-1 não tratados. Estudos anteriores demonstraram uma diminuição na expressão de algumas destas moléculas nos linfócitos T CD4+ e CD8+ nas primeiras semanas de tratamento anti-retroviral, em paralelo com a rápida descida da carga viral que parece não se verificar nos doentes em que, apesar da supressão da carga viral, não se observa uma resposta imunológica eficaz.
É nosso objectivo caracterizar detalhadamente estes processos na sequência dos nossos trabalhos anteriores nesta área (Sousa A. E., Chaves A. F., Doroana M., Antunes F., Victorino R. M. 1999 Early reduction of the over-expression of CD40L, OX40 and Fas on T cells in HIV-1 infection during triple anti-retroviral therapy: possible implications for lymphocyte traffic and functional recovery. Clinical and Experimental Immunology 116: 307-15; Sousa A. E., Carneiro J., Meier-Schellersheim M., Grossman Z., Victorino R. M. 2002 CD4 T cell depletion is linked directly to immune activation in the pathogenesis of HIV-1 and HIV-2 but only indirectly to the viral load. Journal of Immunology 169: 3400-6; Grossman Z., Meier-Schellersheim M., Sousa A. E., Victorino R. M., Paul W. E. 2002 CD4+ T-cell depletion in HIV infection: are we closer to understanding the cause? Nature Medicine 8: 319-23).
Este trabalho será desenvolvido na Unidade de Imunologia Clínica do Instituto de Medicina Molecular, em estreita interacção com o Serviço de Medicina 2 e o Serviço de Doenças Infecciosas do Hospital de Santa Maria, na sequência de colaborações já estabelecidas.
A investigação dos mecanismos envolvidos na reconstituição imunológica sob HAART é fundamental para a definição da conduta terapêutica e das melhores estratégias para o desenvolvimento de terapêuticas de base imunológica complementares da terapia anti-retroviral.