Artigo de Medicina e Saúde®
Nº 97 / Novembro de 2005
06 A automedicação é um direito – Dr. Álvaro Cidrais
A automedicação é um direito. Tem riscos! A medicação prescrita por médicos, também. Mas tem benefícios. Numa sociedade promotora da saúde, há tanta legitimidade para a restringir como para a apoiar. Mas há que criar uma escola e uma sociedade promotoras da consciência, dos direitos, dos deveres e das autonomias de decisão.
As polémicas em torno dos medicamentos, fazem emergir algumas questões interessantes. Promovem a discussão sobre a insegurança no uso de medicamentos prescritos por médicos ou pela automedicação. Permitem ver que não há grande perigo na automedicação se as pessoas tiverem consciência do que fazem.
Os casos mais graves de mau uso de medicamentos dão-se quando as pessoas ingerem fármacos, por indicação de «amigos» e vizinhos, de modo incorrecto e prolongado, sem atenderem ao que dizem as bulas! Mas, também ocorrem quando o médico prescreve, quando falha no diagnóstico ou não monitoriza convenientemente a prescrição que fez.
Não tenho dados estatísticos, mas da minha experiência pessoal diria que devem existir tantos casos de intoxicação medicamentosa originadas por prescrições incorrectas e negligência no acompanhamento clínico como por automedicação desinformada.
Todos conhecemos casos em que a prescrição médica incorrecta de medicamentos geraram problemas com gravidade. Não é por isso que consideramos os médicos como incapazes de medicar. Não podemos generalizar assim. Então, porque pensamos de modo diferente quando se trata da automedicação? Porque queremos acusar as pessoas, conscientes, de a promoverem? Faz sentido?
Possivelmente, a explicação terá origem na cultura portuguesa, pouco democrática e pouco emancipadora que defende que as pessoas não são capazes de cuidar de si sem um «pai», um especialista que os encaminhe, os proteja. Eventualmente, este será mais um dos resquícios culturais da conjugação das forças identitárias do Salazarismo e do Catolicismo que tendem a perdurar na mente dos portugueses.
No meu caso, considero as actuais limitações à automedicação um atentado (que não é grave, mas é incómodo) aos meus direitos básicos e à minha autonomia na construção da saúde pessoal e familiar. Tenho o conhecimento básico essencial e a rede de recursos de conhecimento que me permitem saber quando posso automedicar-me ou quando devo consultar um médico para o fazer. Desagrada-me que outros restrinjam esse direito porque há pessoas que não têm o mesmo conhecimento. Não faz sentido!
A este propósito, mais do que limitar e proibir, devemo-nos questionar se não haverá nada a fazer para ampliar a consciência e os direitos dos cidadãos nesta área. Podemos continuar a acreditar que a automedicação é um elevado risco para a saúde! Que este é um problema que só se resolve com a «intervenção divina» dos médicos. Mas, também podemos pensar que na televisão, nas escolas e nos empregos há um trabalho a fazer no sentido de aumentar o poder e a consciência do cidadão na utilização destes bens de primeira necessidade.
Sobre este tema, vale a pena recordar que Portugal está no 27.º lugar do ranking de desenvolvimento humano da ONU. Nos primeiros 20 lugares estão países que há muito que descobriram e praticam o novo paradigma de saúde proposto pela Organização Mundial de Saúde há vários anos: a salutogénese baseada num bom sistema de cuidados primários e de educação para a saúde, na medicina preventiva e na consciencialização e empoderamento dos cidadãos.
Segundo essa perspectiva, a saúde é o máximo bem-estar possível que uma pessoa consegue criar pela sua capacidade de gerir e equilibrar as suas dimensões física, psicológica, social e espiritual, num dado momento e contexto. Assim sendo, a saúde é controlada, acima de tudo, por cada um, usando recursos de saúde como a habitação, os bens de higiene, os alimentos, os medicamentos, os médicos, os hospitais e as sessões de yoga, entre muitas coisas. Portanto, nesta perspectiva, a saúde – um direito fundamental – é conseguida pela acção consciente e empoderada de cada pessoa.
Então, por que razão, no caso português, uma vez que desejamos entrar no ranking dos 20 melhores países do mundo para viver, não temos escolas empoderadoras que promovem a consciência e o uso seguro de medicamentos? Porque é que, sendo esta uma questão que pode representar um risco para a vida, não é integrada nas aprendizagens do Ensino Básico nem é alvo de campanhas de sensibilização na televisão?
Será que o uso de medicamentos, bem como os primeiros socorros e os princípios de suporte básico à vida – tão úteis para salvar vidas em caso de acidentes rodoviários – não são tão ou mais importantes para a segurança dos cidadãos do que os limites e as fronteiras da Europa, que fazem parte do programa de Geografia?
Talvez também tenhamos de redefinir rapidamente, mas de modo consistente, o que são os direitos fundamentais e redesenhar o papel da escola e da televisão na construção de uma sociedade que visa o desenvolvimento humano e a promoção dos seus direitos.
Dr. Álvaro Cidrais
Geógrafo e Consultor