- Maria de Lourdes Modesto: «Julgava que me tinha preparado psicologicamente para ficar surda»
«Julgava que me tinha preparado psicologicamente para ficar surda»
Cozinha Tradicional Portuguesa, Receitas Escolhidas, Festas e Comeres do Povo Português e Palavra Puxa Receita são alguns dos muitos livros de Maria de Lourdes Modesto. Dispensa apresentações no que toca a assuntos relacionados com a mesa portuguesa, com certeza...
No dia 1 de Junho completa 77 anos e ao longo dos mesmos tem vindo a abraçar inúmeras actividades. Algumas vivem nas lembranças, muitas permanecem e outras são recentes. É o caso da Associação Portuguesa de Apoio a Pessoas com Dificuldades Auditivas.
Medicina & Saúde® – É impossível não se pensar na cozinha tradicional portuguesa quando se ouve o seu nome. Poderia dizer-nos como iniciou a sua actividade profissional antes de se afirmar como gastrónoma?
Maria de Lurdes Modesto – Quando chegou a altura de decidir como iria ganhar a vida surgiram uma série de cursos destinados em especial à população feminina. Tinha bastante habilidade para trabalhos manuais, por isso integrei o curso de Educadora de Economia Doméstica, de dois anos. Além disso, era o mais atractivo a nível económico, afinal, sou da província: nasci em Beja e vivi até aos 15 anos em Évora.
M&S® – Quais as oportunidades profissionais desse curso?
MLM – Quando acabei o curso fui trabalhar no Instituto Médico-pedagógico Condeça de Rilvas, que albergava crianças com deficiência mental. Mas como tinha de leccionar durante três anos, fui dar aulas para o liceu Filipa de Lencastre. Depois surgiu aquela que considero a minha grande oportunidade profissional, designadamente, dar aulas de Trabalhos Manuais no Liceu Francês, onde estive durante oito anos. Numa determinada altura entrei numa peça de teatro organizada pelo Liceu e fui convidada para trabalhar na televisão.
M&S® – E quando surge a dedicação pela gastronomia?
MLM – O meio televisivo era ainda bastante fechado e admito ter tido um certo receio de «beliscar» a minha segurança profissional e hesitei, mas devido à insistência do convite e às opiniões dos amigos e familiares acabei por aceitar. Porém, com uma condição...
M&S® – Qual?
MLM – Disse que aceitaria o convite se fizesse algo direccionado para o público feminino. Como havia um programa dedicado à Mulher fui incluída no mesmo, nomeadamente, na área da Culinária. Este facto obrigou-me a especializar-me em Gastronomia. Na altura tinha 27 anos.
M&S® – Além de apresentadora também trabalhava numa multinacional de produtos alimentares...
MLM – Sim. Ganhei um prémio do Instituto Franco-Portugais, nomeadamente, uma bolsa de estudo. Tive de escolher um tema e durante um mês estive em Paris a estudar literatura contemporânea.
Durante a minha estada estabeleci contactos com a Fima Unilever. Esta empresa tinha dimensão considerável em Paris, mas em Portugal ainda só detinha um pequeno escritório. Já em Portugal, decidi agradecer as amabilidades aquando em França e convidaram-me para trabalhar. Fiquei reticente porque gostava de trabalhar no Liceu Francês, mas aceitei e estive na Fima durante 31 anos. Dirigi o Serviço de Apoio ao Consumidor e colaborei com o Departamento de Marketing ao nível de publicidade, mas sem nunca associar o meu nome a nenhuma marca.
M&S® – É sabido que tinha (e continua a ter!) várias actividades. Aliás, o facto de ter este emprego não a impediu de continuar a apresentar a rubrica de culinária na RTP.
MLM – É verdade... nunca fui de ter um único emprego. Em simultâneo com a Fima, trabalhava em outras áreas e dedicava-me a diversas actividades profissionais e de lazer. Em 1959, comecei a escrever para a Verbo, uma editora que faz parte da minha vida até aos dias de hoje. Por exemplo, também fui membro-fundadora da Fundação
Portuguesa de Cardiologia, à qual hoje não estou ligada. Associei-me ao Instituto Nacional de Cardiologia Preventiva Prof. Fernando de Pádua, onde continuo a dar apoio.
M&S® – Tal como aconteceu com algumas actividades às quais ainda se dedica, também teria continuado a trabalhar na Fima por mais alguns anos se a perda de audição não interferisse com a sua actividade profissional...
MLM – De facto, deixei de trabalhar na Fima porque senti que a minha deficiência auditiva se agravava, até porque o meu trabalho ultimamente era sobretudo Relações Públicas, em especial com a classe médica.
M&S® – Quais foram os primeiros sinais da perda de audição?
MLM – Quando tinha 36 anos fiz uma viagem ao Algarve e recordo-me de ouvir um apito muito intenso. Tinha a carta de condução há relativamente pouco tempo e estava a passar pela Serra do Caldeirão, pelo que pensei que fosse por causa da Serra. Mas estava enganada. Aquele apito não era exterior nem desapareceu... era propriedade minha.
M&S® – Sofreu evoluções?
MLM – O meu quadro clínico piorou e uma amiga recomendou-me marcar uma consulta com o Prof. Nobre Leitão. Este otorrino passou a acompanhar-me, fez-me audiogramas e soube imediatamente qual o prognóstico, mas não teve coragem de me dizer. Nessa época, era em Espanha e na Suíça que existiam os meios de diagnóstico mais avançados, pelo que vários amigos incentivaram-me a ir ao estrangeiro e o meu médico recomendou-me um especialista espanhol.
M&S® – Foi nessa altura que teve conhecimento do diagnóstico?
MLM – Estive 12 dias a realizar exames, em Espanha, e fiquei a saber o que até à data me tinham ocultado. Diagnosticaram a destruição progressiva da cóclea bilateral (dois ouvidos), portanto, jamais iria recuperar a audição perdida.
M&S® – Foram detectadas as causas da sua deficiência auditiva?
MLM – Procurou-se no meu historial o que a poderia ter ocasionado e não se encontrou nada. Apenas se colocou a hipótese de ter sido influenciada pela tosse convulsa que tive em bebé. Por outro lado, como adorava dançar, frequentava muito discotecas e até altas horas e o meu problema, de facto, foi-se agravando.
«Este aparelho não requer muita agilidade para ser colocado, quase não o sinto e as outras pessoas não o vêem», refere Maria de Lourdes Modesto.
M&S® – Num determinado momento perdeu completamente a audição...
MLM – A situação agravou-se quando deixei de ouvir do ouvido esquerdo. Foi quando comecei a torcer o pescoço para conseguir ouvir. Recordo-me que o Prof. Fernando de Pádua foi uma das pessoas que me chamou a atenção de que não ouvia, pois durante uma acção alguém falava comigo e eu não reagia, porque não ouvia.
Certo dia, quando regressava da Escola de Dietistas de Coimbra, onde dava aulas de Técnicas Culinárias, comentei com a dietista que viajava comigo se também estava a ouvir um barulho estranhíssimo, ao que me respondeu negativamente. O meu marido estava à minha espera e quando ligou o carro voltei a ouvir um barulho estranho e comentei com o meu marido, que não tinha ouvido nada. Quando cheguei a minha casa, no Estoril, já não ouvia nada. Este episódio deu-se em 1987.
M&S® – Como reagiu perante a surdez?
MLM – Julgava que me tinha preparado psicologicamente para ficar surda e resolvi ir trabalhar, mas combinei previamente com a minha assistente em ligar caso ficasse aflita e foi o que acabou por acontecer. Não ouvia nada do que ela me dizia, mas como esperava o meu telefonema, apenas lhe disse para avisar o meu marido para me ir buscar. Estava completamente em pânico e depois disso fui ao médico, que me informou que havia chegado o momento de colocar um aparelho auditivo.
M&S® – E como se adaptou à nova condição?
MLM – Tentei não fazer da situação um «bicho-de-sete-cabeças». O meu médico recomendou-me o laboratório Widex, um dos mais avançados, e, além do apoio do otorrinolaringologista, comecei a ser acompanhada por um audiologista e tive lições de leitura labial com uma terapeuta da fala.
M&S® – Foi fácil?
MLM – Não. Tive de fazer um enorme trabalho de adaptação, pois não era uma doente muito fácil, porque tinha imensas distorções. O meu ouvido esquerdo ouve praticamente o mesmo que o direito, só que o esquerdo não tem capacidade para interpretar os sons, o que exigiu um trabalho muito árduo, quer da minha parte, quer da parte do audiologista.
M&S® – Ainda utiliza o mesmo tipo de aparelho audiológico?
MLM – Os aparelhos têm evoluído e, felizmente, tenho tido a possibilidade de acompanhar essa evolução. Também tive sempre a preocupação de informar-me junto do meu médico das últimas novidades e fui tendo respostas correspondentes.
Comecei por ter um aparelho digital, que era munido de uma caixinha, onde manualmente modulava o som. Por exemplo, se queria conversar carregava num botão, mas se quisesse ouvir televisão pressionava outro, o que exigia uma grande colaboração da minha parte.
Depois mudei para o Diva, que já fazia automaticamente a modulação dos sons. Um dos grandes problemas dos surdos é o barulho ambiente. As pessoas que têm aparelhos sofrem muito e esse sofrimento não é reconhecido. Se estivesse muito ruído ambiente, este aparelho reduzia-o de forma automática.
Há cerca de quatro meses mudei para o Inteo, pelo qual estou apaixonada. Este aparelho não requer muita agilidade para ser colocado, quase não o sinto e as outras pessoas não o vêem. Apresenta diversas vantagens relativamente aos restantes que usei: avisa com muita antecedência e de uma maneira nada agressiva que a pilha está a acabar (dá tempo para ir a Lisboa comprar uma nova pilha), o nível de audição é melhor e não tem feed-back. De facto, tem um enorme potencial, mas sei que ainda não consigo tirar todo o partido das suas potencialidades.
M&S® – Está correcto dizer que a utilização de aparelho auditivo soluciona todos os problemas de uma pessoa com deficiência auditiva?
MLM – É evidente que nem tudo está resolvido. São inúmeros os problemas que enfrentamos. Nós não somos surdos profundos, não fazemos linguagem gestual. Somos a faixa maior dos surdos, aqueles que ouvem mal e que sofrem muito com o ruído ambiente, com a incompreensão das pessoas, com o isolamento e com a troça. Por esse motivo tomei a iniciativa de perguntar ao médico e depois ao audiologista se fazia sentido formar uma associação de apoio às pessoas com deficiência auditiva, pois apercebo-me que é possível melhorar a nossa qualidade de vida.
«Acontece que, regra geral, as pessoas não assumem este problema com a mesma facilidade com que assumem a falta de visão»
M&S® – Poderia indicar um problema concreto que a incomode?
MLM – Como faço as minhas actividades normalmente, pensam erradamente que a minha doença, afinal, não é assim tão importante nem grave. Por vezes, quando as conversas se cruzam, não consigo apanhar o contexto e noto uma certa falta de paciência para me transmitirem o que dizem.
Regra geral, as pessoas não têm muita paciência para os surdos. Têm durante algumas horas, mas não na convivência diária. Penso que se esquecem que temos uma deficiência auditiva e, muitas vezes, não estão para perder tempo a repetir-nos o que não ouvimos. Até na minha família tenho um exemplo concreto.
Quando chamo por alguém e me respondem «estou aqui» não faço a mínima ideia onde é «aqui», isto é, se é para a direita ou para a esquerda.
M&S® – Voltando à Associação Portuguesa de Apoio a Pessoas com Dificuldades Auditivas, da qual é presidente, passou da teoria à prática?
MLM – Temos reuniões regulares e já chegámos à conclusão de que cada pessoa envolvida deve ter a formação adequada para transmitir determinadas mensagens para o exterior, que contribuam para melhorar a nossa qualidade de vida. Queremos, sobretudo, ser um grupo de pressão junto dos serviços de saúde e que a nossa deficiência seja reconhecida, ou seja, nós não somos surdos profundos, mas temos problemas que podem ser resolvidos, porém, não individualmente, por isso constituímos este grupo. Pretendemos instigar as pessoas a mudar algumas atitudes para connosco, por exemplo, a falarem-nos de frente e não ao ouvido.
Queremos sensibilizar os arquitectos para a problemática da acústica dos edifícios (no estrangeiro existem edifícios munidos de anéis magnéticos onde os aparelhos auditivos têm capacidade para captar o que se diga mesmo a uma grande distância). Entre outras coisas, também queremos sensibilizar as pessoas para o barulho que é feito sem se ter a noção. São pequenas coisas que se podem resolver e que parecem não ter importância, mas que nos fazem sofrer e que nos retiram a qualidade de vida.
M&S® – Também há o problema do custo dos aparelhos auditivos...
MLM – A maioria das pessoas que começa a utilizar um aparelho é para a vida, porque os custos são muito elevados. A segurança social comparticipa com uma maior percentagem os óculos do que os aparelhos auditivos, portanto, não reconhece a evolução. A Associação pretende chamar a atenção para esta questão, nomeadamente conseguir o maior reconhecimento desta deficiência e as respectivas implicações ao nível material e, em especial, os benefícios de que as pessoas com deficiência acabam por não beneficiar, porque não têm capacidade material para acompanhar a evolução.
M&S® – Poderia dar alguns conselhos para os portadores de deficiência auditiva?
MLM – A visão deve ser óptima, pois dá mais segurança. As mãos devem estar bem cuidadas. Por exemplo, se tiverem artroses não podem beneficiar dos pequeninos aparelhos que agora existem, uma vez que não têm a agilidade necessária para os colocar. Se necessário, não devem descurar a ajuda psicológica. Creio que a dada altura sofri a esse nível, mas actualmente tenho todo o à-vontade em assumir a deficiência auditiva. Acontece que, regra geral, as pessoas não assumem este problema com a mesma facilidade com que assumem a falta de visão.
Texto: Sofia Filipe
Fotos: José Madureira