Artigo de Medicina e Saúde®
Nº 115 / Maio de 2007
38 Psicoterapia - Freud com novo aliado: a realidade virtual
Imagine uma situação que lhe causa sufoco. Imagine vivê-la estando num espaço fechado, numa grande altitude ou a bordo de um avião a passar por turbulência. Imagine, de repente, carregar num botão e tudo desaparecer. Bem-vindo à realidade virtual.
A realidade virtual chegou à psicoterapia. Num projecto pioneiro em Portugal, o Prof. Pedro Gamito, da Universidade Lusófona, e o Dr. José Pacheco, do Hospital de Júlio de Matos, uniram o campo da engenharia informática ao da psicoterapia. O objectivo é o de permitir não só a superação de certos traumas impossíveis de reviver, como as situações de guerra, mas também garantir uma maior rapidez e controlo ao profissional de saúde na elaboração dos esquemas de tratamento com o propósito de fazer o paciente superar as fobias.
A ideia de fazer um paciente reviver uma situação aguda como forma de a superar não é propriamente nova. Aliás, segundo o psicoterapeuta do hospital, «a ideia é antiga. Já nos anos 50 se tinha verificado que quando algumas pessoas viviam uma cena aguda na sua imaginação isso as ajudava a superarem-na. Primeiro usaram-se técnicas de relaxamento associadas a cenas fóbicas imaginadas pelo próprio doente. Depois, essas cenas fóbicas, tal como as técnicas de relaxamento, passaram, quando surgiu o gravador áudio, a ser gravadas. Tudo isto não é exactamente algo de novo, mas sim a evolução de uma ideia antiga conjugada com tecnologia recente», defende.
Já para Pedro Gamito, a possibilidade surgiu ainda quando estava a estudar, a fazer o doutoramento em Inglaterra. Este engenheiro ligado à área da informática pensou, amadureceu o conceito e em Portugal chegou à fala com o Dr. José Pacheco, sem que, desde 2002/2003, começaram a dialogar, ainda numa base muito ligeira. Progressivamente, a ideia foi ganhando forma, até se ter tornado no projecto que é hoje. No entanto, houve, desde início, alguns obstáculos a superar.
«Os primeiros e principais obstáculos que tivemos de enfrentar foram as dificuldades técnicas. As condições tecnológicas para se lidar e trabalhar com a realidade virtual são bem mais complexas do que aquilo a que estamos habituados a lidar numa base diária.
A criação dos cenários é sempre um grande desafio», começa por lembrar o professor universitário.
Apesar de estarmos perante algo que parece, para a grande maioria das pessoas, retirado de um qualquer filme futurista, a verdade é que esta não passa de apenas mais uma ferramenta de todo um conjunto de opções que fazem parte de um tratamento. É mais um complemento para facilitar os procedimentos terapêuticos devidamente supervisionados por um profissional qualificado.
Pedro Gamito é peremptório quando afirma que «não estamos em condições, e não acredito que alguma vez venhamos a estar, de dar um CD a um paciente e dizer “agora pode ir para casa fazer terapia”. A realidade virtual nunca passará de um meio complementar terapêutico, mais uma etapa de um tratamento. Quando deve um paciente experimentar esta tecnologia, só os psicólogos e os psiquiatras é que podem dizer».
Também José Pacheco alinha pelo mesmo discurso, insistindo na tónica da individualidade e de um diagnóstico personalizado. Segundo o clínico, «todo o caso deve ser avaliado individualmente. Nem todas as pessoas lidam da mesma forma quando confrontadas com o reviver de uma situação traumatizante. Faz lembrar aquela ideia da criança que tem medo de água e o pai ou a mãe a atiram para dentro de água à força. Algumas crianças podem superar o trauma, enquanto que outras podem ficar com uma condição traumática ainda maior. Não há uma linearidade definida».
Mais rápido, mais eficaz, mais controlado
O grande benefício da utilização desta possibilidade prende-se com três vertentes: o facto de ser mais rápido, mais eficaz e permitir um maior controlo ao técnico de saúde responsável pela duração, realização e intensidade do tratamento.
«O campo que mais nos interessa é o dos traumas de guerra. Julgo que só há um estudo acerca deste problema em todo o mundo acerca dos combatentes do Vietname. Gostávamos de entender mais sobre este fenómeno. A vantagem da realidade virtual é que, como é lógico, não podemos fazer uma pessoa com trauma de guerra passar por esse episódio na realidade. Não vamos mandar alguém para o Iraque.
É inconcebível. Com esta tecnologia, um terapeuta pode inserir alguém, gradualmente, num cenário de guerra e ajudar o doente a tentar superar esse trauma», afirma Pedro Gamito.
Esta situação faz com que o processo terapêutico possa ser acelerado. O terapeuta pode planear o momento ideal sem condicionantes logísticas muito relevantes, bem como definir toda a contextualização de como essa experiência se vai passar.
Segundo José Pacheco, «a exposição a uma fase aguda tem de ser muito bem planeada. Uma pessoa pode ficar ainda mais traumatizada. Deve ser criada uma hierarquia de situações a que a pessoa vai sendo submetida, primeiramente as mais fáceis e, depois, consoante a sua reacção, vai-se subindo de intensidade. Com a realidade virtual, o controlo desses estádios é muito mais facilitado, bem como a inclusão de novos desafios a qualquer altura para avaliar a reacção do paciente».
A rapidez obtém-se pelo facto de esta técnica poder ser feita quando o terapeuta acha conveniente, sem necessidade de grandes viagens ou deslocações desnecessárias e sem os custos inerentes à vivência de outros traumas. Basta imaginar que, para quem tem medo de voar, cada sessão, se incluísse um voo, seria uma pequena fortuna.
A eficácia obtém-se pelo facto de haver uma monitorização de todo o processo, que permite avaliar de forma concreta as reacções dos pacientes. O processo é mais controlado porque garante ao terapeuta um controlo de todas as condicionantes temporais e ambientais.
De acordo com o professor universitário, «até ao momento o feedback tem sido extremamente positivo. Espero que daqui a uns anos vejamos os psicólogos e os psiquiatras a usarem esta nova tecnologia e que contribua para facilitar os tratamentos», conclui.
Os cenários existentes
Guerra – traumas de guerra.
Aeroporto e avião – medo de voar.
Condução em estrada Elevadores panorâmicos – medo de espaços fechados e de alturas.
Praça aberta com pombos – medo de espaços abertos e de pombos.
Texto: Rui Miguel Falé