Artigo de Medicina e Saúde®
Nº 108 / Setembro de 2006
30 Opinião: O acompanhante e o adulto internado
- Enf.ª Maria José Cunha
Olhar o utente que necessita dos nossos cuidados de uma forma holística é um imperativo para que possamos prestar cuidados com qualidade. É necessário que o utente se sinta e seja verdadeiramente cuidado.
Swanson (1991) diz que «cuidar é uma forma de se relacionar, crescendo com um outro significativo, com quem nos sentimos pessoalmente envolvidos e responsáveis».
Contudo, cuidar não é algo que pertença apenas aos enfermeiros. Certamente que o cuidar dos enfermeiros é um cuidar profissional, mas cada um de nós teve em primeiro lugar o cuidado da família.
Cada família cuida dos seus elementos, ao longo de toda uma trajectória de vida. Cuidados esses que apenas são interrompidos quando um elemento se vê confrontado com uma situação de doença que implica internamento hospitalar. E é nesta situação desagradável, de dor e de pânico pelo desconhecido, de separação do meio habitual, que se quebra o «cuidar» da família, relativamente ao familiar internado.
No exercício diário da nossa profissão vemos a angústia, a insatisfação e a tristeza dos nossos utentes, por terem de se separar da sua família, muitas vezes de forma inesperada e abrupta. Por outro lado, a família expressa-nos frequentemente a sua inquietação e ansiedade, por se sentir separada do seu ente querido, daquele com quem partilha os valores da vida familiar.
Sendo a Enfermagem uma profissão de ajuda, não podemos deixar de vivenciar as experiências sentidas pelo nossos utentes e familiares, pois, o desempenho da nossa profissão não se resume apenas às competências técnico-científicas, e é nesta perspectiva que consideramos que as relações enfermeiro/utente não podem ser apenas relações funcionais, nas quais existe uma desigualdade de poder, ficando o utente numa situação de desigualdade, devendo submeter-se ao «saber» do enfermeiro. Antes pelo contrário, o enfermeiro para cuidar necessita de actuar respeitando os valores inerentes à pessoa humana.
Sem dúvida que todo o ser vivo, e especialmente o Homem, necessita de cuidados para o desenvolvimento de todas as suas capacidades, e a família é o núcleo fundamental da prestação desses cuidados, durante toda a vida do indivíduo, apenas sendo interrompida nas situações de doença.
No âmbito dos cuidados de Enfermagem, a família deve desempenhar um papel preponderante. O manual Fundamentos de Enfermagem de Leslie Atkinson e Mary Ellen Murray/1989), citado por Queirós (1998, pág. 33), refere:
«Interacção com os membros da família. A enfermeira não se importa apenas com a pessoa hospitalizada, mas incluiu os membros da família, ao planear as intervenções de Enfermagem. Durante o acto da intervenção, ela também orienta os membros da família quanto ao ambiente hospitalar. (...) A enfermeira tenta fazer com que os membros da família se sintam o mais confortável possível. (...) Embora essas intervenções sejam feitas para os membros da família, elas asseguram ao paciente que os entes queridos também são importantes para a enfermeira.»
Mas o que se entende por entes queridos? Serão apenas os familiares consanguíneos? Ou devemos entender a família num sentido mais abrangente, incluindo as pessoas mais significativas para o utente?
Para Sampaio, como está citado em Alarcão (2000, pág. 37), família é «um sistema, um conjunto de elementos ligados por um conjunto de relações, em contínua relação com o exterior, que mantém o seu equilíbrio ao longo de um processo de desenvolvimento percorrido através de estádios de evolução diversificados.»
Existem vários conceitos de família, e neste contexto faremos «referência a um conceito mais globalizador e flexível que define um grupo de pessoas, relacionadas entre si biológica, legal ou emocionalmente, que não necessariamente convivam no mesmo lugar e que partilhem uma história comum e uma regras, costumes e crenças básicas na relação com distintos aspectos da sua vida em geral e com o cuidado de saúde em particular», como refere Goldenberg (ROL, n.º 223).
Sendo a família um ponto de apoio para a pessoa, o seu porto seguro, nem sempre a situação é tão linear, pois, muitos são os casos em que, por motivos vários, as relações familiares foram interrompidas, os laços foram cortados.
Mas, mesmo nestas situações certamente haverá alguém que para o utente em causa seja significativo e que para ele funciona como ente querido, como o seu «familiar», e que certamente quererá estar junto dele. Nós, enfermeiros, devemos estar atentos e proporcionar a essa pessoa o mesmo espaço e atenção que a família convencional teria.
Actualmente, outro aspecto a que devemos dar atenção refere-se às diferentes ideologias, pois, é cada vez mais frequente termos nas nossas instituições utentes cuja cultura difere da nossa, e que vai definir os papéis e relações dos seus elementos, nomeadamente, determinando o comportamento a ter face a uma situação de doença.
Mas estarão os enfermeiros preparados para enfrentar estas diferenças culturais? Até que ponto atendemos às particularidades de cada utente na prestação dos cuidados?
Ao questionarmo-nos sobre estes aspectos, consciencializamo-nos que não é possível pensar na Pessoa Humana como entidade isolada, pois, é desde a sua concepção um ser com, em relação com o outro e com o meio. Sendo a pessoa fruto de duas pessoas diferentes, evidencia a necessidade que ela tem de não estar só e de só poder ser ela própria se desde o nascimento for ela com o outro.
Não é possível vivermos sozinhos, isolados do mundo, pois, perdemos a essência do Ser Humano. Também biologicamente esta é uma verdade assumida, pois desde o nascimento necessitamos dos cuidados dos nossos progenitores, de mantermos a ligação estreita, sob pena de não ser viável a nossa existência. Talvez estes e outros condicionalismos biológicos estejam na base da necessidade do Homem em ter companhia, de viver em grupo, condição essencial para a sua evolução e multiplicação.
Então, se a pessoa necessita das suas ligações afectivas para se realizar, porque é que numa situação de doença, nós profissionais da Saúde insistimos para que a separação se torne real?
Não será quando estamos doentes que mais necessitamos da «nossa família»?
A família é desde o início o local privilegiado dos cuidados. A família não pode substituir os cuidados profissionais face a uma situação de doença, mas é, sem dúvida, um recurso importante nos cuidados a ter com os seus elementos doentes.
Se a família nos acompanha ao longo de toda a nossa existência, porque não nos pode acompanhar quando estamos doentes? Esta será certamente uma questão levantada pelos nossos utentes.
E será que a família pode ser substituída? Será que a família opta por deixar de cuidar do seu familiar?
Feytor Pinto (1991, pág. 249) refere que não há instituição assistencial, pública ou privada, que possa substituir a família, porque quando o ser humano está doente, o problema não é só físico, nem apenas económico, mas é um problema humano e a cura integral só se consegue com um bom apoio na relação e, sobretudo, na relação familiar.
O envolvimento da família nos cuidados prestados ao utente proporciona e mantém o direito que a família tem de estar unida.
Nesta necessidade de união, que adquire maior relevância nas situações de stress como seja a doença, será que a presença dos familiares proporciona conforto e tranquilidade a ambas as partes? Será que contribui para a redução da ansiedade e do medo perante situações estranhas e adversas, como é o internamento hospitalar?
Ao reflectirmos sobre estas questões, pensamos que sim. Com efeito, pensamos que a presença do familiar junto do utente seja uma mais-valia na sua recuperação.
Mas porque é que continuamos a manter os familiares
afastados? Temos receio de ser observados no desempenho das nossas funções?
Não estaremos todos interessados em prestar cuidados de Enfermagem com qualidade? Se estamos, porque insistimos em afastar os utentes das pessoas que lhes são mais próximas? Será que se estivéssemos do outro lado, no papel de utente, não gostaríamos de ter a nossa família junto de nós? Será que ainda não pensámos neste aspecto, porque quando estivemos doentes, ou quando tivemos algum familiar doente foi-nos possível estar junto de quem amamos?
Certamente que são questões que ficam no ar, para as quais não temos ainda uma resposta clara, mas que nos levam a pensar e a reconsiderar a nossa prática.
Tradicionalmente, o papel que era atribuído ao utente era um papel de submissão ao «saber» dos profissionais, especialmente do médico e do enfermeiro. Desde o momento que a pessoa era admitida no hospital como necessitando de cuidados perdia a sua identidade. O utente tinha de se socializar com o ambiente e normas hospitalares. Quando esta socialização não se tornava efectiva, o utente não tinha outra alternativa a não ser reprimir o seu «Eu», e participar de forma não natural, porque «só» em fases difíceis da sua vida.
Lentamente, a filosofia das instituições vai se alterando, permitindo ao utente ter um papel mais interventivo nas decisões que lhe digam respeito. Assim, os enfermeiros devem desempenhar um papel fundamental nesta mudança de mentalidade promovendo a mudança de atitude e facilitando a abertura da instituição para o exterior.
Se até há pouco tempo os profissionais de Saúde mantinham os familiares «longe» do utente, permitindo apenas a visita durante curtos períodos, e estavam protegidos pelos regulamentos das instituições, actualmente esta situação vai se alterando, pois foi alvo de normalização por parte do Ministério da Saúde, o que implicou um alargamento do horário das visitas, bem como a presença de um acompanhante.
Sendo a presença contínua de um familiar junto do utente uma utopia para a maior parte da população, começa lentamente a ser uma realidade nos nossos serviços de Saúde.
De qualquer forma é evidente que temos ainda um longo caminho a percorrer, neste campo. Se por um lado é evidente a importância que a família tem na recuperação do seu familiar, quer seja no aspecto psicológico quer seja no aspecto físico pois pode contribuir de forma eficaz na continuidade dos cuidados, é também muito importante que o enfermeiro deixe de ver no familiar do utente uma ameaça, um estorvo à sua prestação de cuidados, e possa aceitá-lo como recurso precioso na procura da qualidade dos cuidados.
Todas as questões aqui levantadas foram a motivação para nos debruçarmos sobre o papel do acompanhante do utente adulto internado. Estamos convictos que só conhecendo a opinião dos utentes e seus acompanhantes, só sabendo como vivenciam essa experiência, os podemos ajudar e entender as suas necessidades, contribuindo desse modo para que esse acompanhamento seja uma experiência enriquecedora para todos os envolvidos.
Nota: Bibliografia cedida a pedido.
Enf.ª Maria José Cunha
Mestre em Ciências de Enfermagem pelo Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar, Porto
Especialista em Enfermagem Médico-Cirúrgica.
Responsável do Serviço de Ortopedia do Hospital Padre Américo – Vale do Sousa