Artigo de Medicina e Saúde®
Nº 106 / Agosto de 2006
10 Entrevista - Dr. Marinho Falcão, coordenador do Observatório Nacional de Saúde (ONSA)
Estudar as situações de saúde e de doença
«Mais importante do que estimar o número de mortos em Portugal, no caso da pandemia da gripe chegar cá, será prever quantas pessoas ficarão doentes, quantos médicos e outros profissionais de saúde serão necessários em cada semana de evolução do problema, quantas camas de hospital, quantos ventiladores… porque a determinar se as pessoas morrem ou não morrem estará a muita ou pouca disponibilidade de recursos nestas áreas», afirmou à Medicina & Saúde® o Dr. Marinho Falcão, coordenador do Observatório Nacional de Saúde (ONSA).
O Observatório trata-se de um centro de investigação aplicada, de cujos objectivos se destaca o de gerar por si próprio e procurar obter de outras entidades dados indicadores que permitam descrever de forma minuciosa e exacta o estado de saúde dos diversos grupos populacionais e das suas doenças.
Medicina & Saúde® – Quais são as competências do ONSA?
Dr. Marinho Falcão – Bom, o ONSA é um centro de investigação do Instituto Nacional de Saúde (INSA) para a concretização de uma função desta instituição. Basicamente, incumbiram-nos de fazer o estudo das situações de saúde e de doença da população portuguesa (não dos serviços de saúde ou das políticas de saúde), utilizando, para o efeito, dados já existentes e passíveis de exploração, ou produzindo-os através de alguns instrumentos de observação geridos por nós, e de distribuir a informação recolhida, quando se revela útil, a quem dela possa necessitar, nomeadamente os serviços centrais do Ministério da Saúde, os serviços de saúde locais, regionais e nacionais e a própria população. Em traços breves, são estas as tarefas que temos vindo a desenvolver.
M&S® – O sistema de monitorização, vigilância e registo dos acidentes domésticos e de lazer, está entre os instrumentos de observação do ONSA. Como funciona?
MF – Esse é, na verdade, um dos vários instrumentos de observação. Começou a funcionar com a criação de uma rede de hospitais e de centros de saúde com serviços de urgência, que cobre de forma razoável o País, e envia todos os meses ao Instituto de Gestão Informática e Financeira da Saúde (IGIF), e este ao ONSA, os casos registados nos respectivos guichés. A partir daí, produzem-se relatórios anuais sobre os tais acidentes domésticos e de lazer.
M&S® – A rede «Médicos-Sentinela» continua a dar conta do recado? Quem lhe dá corpo? O que faz?
MF – Está a cumprir e bem os objectivos para que foi criada. Por exemplo, em relação aos problemas da gripe tem-se revelado muito útil. É um sistema de observação voluntária em saúde, constituído por médicos de Clínica Geral/médicos de família, que desenvolvem a sua actividade profissional em centros de saúde. São cerca de 140 e estão dispersos por todo o país, incluindo, naturalmente, Açores e Madeira. Cada um tem uma lista de doentes caracterizada por idade e sexo: crianças abaixo dos cinco anos, adultos do sexo masculino acima dos 75… e por aí fora.
O que é que se pede a esses médicos? Que estimem taxas de incidência de algumas doenças ou situações com elas relacionadas, que ocorram na população inscrita nas suas listas; que façam a vigilância epidemiológica de algumas doenças registadas na comunidade, de forma a permitir a identificação precoce de eventuais «surtos»; e que organizem uma base de dados, que possibilite, em qualquer momento, a análise epidemiológica aprofundada de doenças com interesse para a saúde pública.
A síndrome gripal está em vigilância permanente, com saída semanal de resultados, aqui e na Europa, mas existem outras situações que merecem uma atenção aturada dos Médicos-Sentinela, como sejam as de enfarte do miocárdio e acidente vascular cerebral. Desta forma, podemos dizer todas as semanas, todos os meses, ou todos os anos, que se registaram tantos casos desta ou daquela doença por cada cem mil habitantes.
Durante os primeiros anos, toda a informação dos médicos chegava ao ONSA através do correio normal, mas hoje, cerca de um terço dos clínicos já utilizam a Internet. Os restantes dois terços ainda não usa esta via, porque não tem computador ou não tem acesso à Net. No entanto, as coisas estão a avançar no sentido de que todos possam recorrer, no mais curto espaço de tempo, ao correio electrónico.
Ondas de calor
M&S® – O que é que se pretende com o projecto Ícaro?
MF – O projecto Ícaro (figura da mitologia grega, que morreu de uma queda, depois de subir muito alto e ver as suas asas de cera derretidas pelo sol) tem a ver com as ondas de calor e os seus efeitos na saúde. Por outras palavras, e indo mais longe, é a designação de um programa português, que engloba actividades de investigação, vigilância e monitorização de efeitos climáticos na saúde e na mortalidade humanas. Visa, igualmente, a relação destes efeitos e a morbilidade
As pessoas recordam-se, com certeza, das temperaturas demasiados altas registadas no Verão de 2003, que tiveram consequências graves, a ponto de desencadearem uma grande discussão nos media… Até o ministro da tutela foi envolvido no debate, que se revelou bastante esclarecedor, em relação a muitos aspectos da questão designada por «ondas de calor e seus efeitos».
Andando para trás no tempo, 22 anos antes tinha acontecido uma situação semelhante, com um aumento significativo do número de óbitos. Como não havia computadores, fizeram-se cálculos para o país e pequenos estudos em Cascais e Lisboa, mas as conclusões, apesar de serem feias, não preocuparam ninguém.
O problema repetiu-se em 1991, com menos intensidade e menos óbitos, e em 1997, quando o ONSA foi criado, nós resolvemos analisar, detalhadamente, estes dois casos, no tocante à mortalidade e publicamos relatórios que confirmavam as consequências graves para a saúde registadas em ambas as datas.
Na altura, um estagiário de estatística do Observatório resolveu alicerçar a sua tese de licenciatura num modelo matemático criado por si, que permite calcular, com base na previsão das temperaturas de hoje, amanhã e depois de amanhã, o chamado índice de Ícaro, o qual descreve se vai haver excesso de mortalidade ou não e quais os números a atingir.
Trata-se de um trabalho que tem vindo a ser feito desde 1999, com a colaboração dos Instituto de Meteorologia. Com falhas, com incertezas… (as próprias previsões dos meteorologistas são isto mesmo: previsões) mas, pronto, a Direcção-Geral de Saúde e a Protecção Civil passaram a estar a par dos dados obtidos, o que lhes tem permitido lançar alertas quando a situação o justifica. Como se sabe, os menores de 5 anos e maiores de 65, constituem grupos de risco quando o calor aperta.
Anomalias congénitas
M&S® – O CERAC – Centro de Estudos e Registo de Anomalias Congénitas – também faz parte das competências do ONSA. Desde quando existem dados disponíveis nesta área?
MF – Desde 1996, ano em que o CERAC arrancou. Embora pertencesse ao INSA, este sistema esteve sedeado vários anos no Hospital de Egas Moniz, antes de passar para o ONSA. Regista, na altura dos nascimentos ou mesmo antes disso, através de diagnóstico pré--natal e até ao primeiro mês de vida, as anomalias congénitas detectadas pelos serviços de Pediatria e de Obstetrícia dos hospitais.
Desta forma, consegue-se estar sempre a par do que se passa nesta área... Se estão a aumentar, se estão a diminuir…
Recordou-se há pouco tempo a explosão do reactor n.º 4 da central nuclear de Chernobyl, na Ucrânia e, a propósito, posso dizer que tais registos foram muito úteis, em termos europeus, quando aconteceu este desastre, cujos efeitos radioactivos pouparam, aparentemente, Portugal mas, não devemos esquecer, chegaram a França, que fica aqui tão próxima.
M&S® – Temos muitas anomalias congénitas?
MF – Não temos mais do que a maior parte dos países. O nosso nível de prevalência neste domínio é semelhante ao de outros países da Europa, não tendo surgido nada, nos últimos anos, que nos surpreendesse ou fizesse divergir dos nossos parceiros europeus.
M&S® – Qual é a finalidade do chamado Observatório de Óbitos?
MF – Trata-se de um sistema de observação, cuja existência ainda está à espera de uma boa definição. No entanto, pode dizer-se que tem em vista a identificação das causas de morte que, em cada ano, sofrem alterações inesperadas. Mas neste momento não é um instrumento claro e bem definido como o Ícaro, por exemplo.
Gerar estimativas
M&S®– O Inquérito Nacional de Saúde (INS) também faz parte dos bens definidos?
MF – Sim, sim… Recolhe dados de base populacional, gera estimativas sobre alguns estados de saúde e de doença da população portuguesa, bem como as respectivas determinantes, e estuda a sua evolução ao longo do tempo. Até à data foram realizados vários INS, com a utilização de amostras probabilísticas representativas da população de Portugal continental.
Sistema de medição e observação, o INS foi planeado e testado pela primeira vez entre 1980 e 1982. Após inquéritos de âmbito regional, conduzidos entre 1983 e 1985, avançou-se, em 1987, para o primeiro com cobertura total do território continental, tendo o trabalho, incluindo a avaliação final, contado com a participação do National Center for Health Statistics dos Estados Unidos da América.
O INS, que neste momento está a chegar ao fim da sua quarta edição, é conduzido, tanto na selecção da amostra, como na colheita dos dados, pelo Instituto Nacional de Estatística (INE), através de entrevistas realizadas em domicílios previamente escolhidos e, apesar de se tratar de um instrumento pesado (envolve quase 50 mil pessoas) e dispendioso, tem-se revelado sempre de uma utilidade quase ilimitada, em muitas áreas da saúde.
Realizados, em regra, de cinco em cinco anos, os inquéritos procuram colher informações sobre o estado de saúde das pessoas, a forma como utilizam os serviços de saúde, os seus estilos de vida… O apuramento varia de caso para caso e desta vez, como a amostra é muito grande, vamos ter a possibilidade de analisar os dados com minúcia, a ponto de tentar ver, por exemplo, se o consumo de tabaco corresponde a um estilo de vida ou se não passa de um detalhe, se as mulheres estão mesmo a fumar mais do que os homens, se nas mais novas o consumo já está a decrescer…
M&S® – … um excelente instrumento de trabalho para os médicos!
MF – Sem dúvida… sobretudo para os planeadores de saúde e para os decisores. Se não se soubesse que a percentagem de mulheres fumadoras está a subir e a dos homens a descer, as campanhas não seriam mais dirigidas às primeiras… Não sei se será bem assim, porque a mensagem acaba por ser sempre um bocado global, mas podiam ser mais dirigida às mulheres.
Observar em casa
M&S® – O ECOS justifica-se?
MF – Com certeza. Trata-se de um acrónimo de «Em casa observamos saúde», que apresenta semelhanças com o INS, mas é muito mais pequeno, muito mais rudimentar, muito mais rápido e muito mais barato. O sistema ganha corpo numa amostra de famílias portuguesas com telefone fixo (a inclusão dos móveis está a ser objecto de estudo).
São 1100 ou 1200 os agregados familiares portugueses convidados a participar no ECOS, que consiste basicamente na realização de três contactos telefónicos anuais, com cada um, todos relacionados com a sua saúde. Como já dei a entender, a colheita de informações, neste caso, é bastante menos alargada em questões e detalhes do que no INS, e isso permite fazer andar o processo com maior rapidez.
A próxima entrevista do ECOS inclui uma pergunta sobre
doenças crónicas, a fim de, com os resultados obtidos, podermos delinear cenários das consequências da virtual vacina da gripe, que entram em linha de conta com a percentagem de pessoas portadoras de doenças prolongadas, as quais correm mais riscos de complicações.
É algo imperfeito, mas em certas circunstâncias serve. As coisas da pandemia de gripe são todas extremamente imperfeitas…não se sabe bem o que vai acontecer, logo, uma informação, mesmo não sendo muito rigorosa e numa amostra pequena, pode ser muito útil.
M&S® – O ONSA também desenvolve uma base de dados de literatura «cinzenta». O que é isto, exactamente?
MF – Esse instrumento chama-se PIO (Pesquisar Investigação Oculta) e consiste, no fundo, numa base de dados, onde são inseridos relatórios, dissertações e trabalhos vários, produzidos em faculdades, institutos e escolas de serviço de saúde, com metodologias inovadoras e ou resultados interessantes, sobre o estado de saúde (doença) e suas determinantes, de grupos populacionais, que nem sempre são publicados.
Na maioria dos casos, trata-se de teses de doutoramento, mestrado e licenciatura não divulgadas por qualquer razão, e que acabaram por ser arrumadas e esquecidas nas prateleiras das bibliotecas das escolas. O PIO regista a informação nelas contida, com autorização dos autores e, embora em regra não sejam trabalhos importantes, não é menos verdade que podem ajudar outras pessoas… Pessoas que abordem, posteriormente, os mesmos temas.
O que faz falta?
M&S® – A gripe das aves constitui, neste momento, e cada vez mais, uma preocupação mundial. Face à ameaça, qual é o papel do ONSA?
MF – Nenhum. A gripe aviária, enquanto gripe aviária, é um problema veterinário. Ao ONSA cabe, em conjunto com o Centro Nacional da Gripe (que tem a componente laboratorial), a vigilância regular, contínua e semanal da gripe sazonal. Este controlo faz-se há muitos anos.
As pessoas com mais de 65 anos vacinam-se entre Setembro e Outubro, essencialmente, e os asmáticos, cardíacos e diabéticos também. Nos primeiros a cobertura atinge cerca de 40% e nos segundos 20% a 30%, sendo ambas baixas em relação a outros países…
Quanto à gripe das aves, eu disse que não fizemos nada, mas fizemos. Utilizando o instrumento ECOS, perguntámos às pessoas em Abril e em Novembro do ano passado, qual era o seu grau de preocupação, relativamente a este problema, e as 16% que se mostraram muito preocupadas antes, mantiveram-se depois, a percentagem das nada preocupadas baixou e a proporção das medianamente alarmadas, subiu, o que nos pareceu razoável.
A mesma questão vai ser apresentada nas próximas entrevistas telefónicas.
Outra coisa que fazemos, a pensar na gripe pandémica, é o planeamento de cenários para o caso de isso acontecer em Portugal. Apresentámos um relatório o ano passado mas, mais importante do que estimar o número de mortos, será prever, agora, quantos indivíduos ficarão doentes, quantos médicos e outros profissionais de saúde serão necessários em cada semana da evolução do problema, para prestar cuidados a estes enfermos, quantas camas de hospital, quantas camas de cuidados intensivos, quantos ventiladores, quantos… O que faz falta? A muita ou pouca disponibilidade de recursos nestas áreas, é que vai determinar se as pessoas morrem ou não morrem.
M&S® – O ONSA está, naturalmente, aberto à colaboração com outras instituições?
MF – Indiscutivelmente. Está aberto à colaboração com instituições ou pessoas individuais e a partilhar dados sobre aquilo que faz e aquilo que produz, em termos de saúde. Não temos cá tudo, nem pouco mais ou menos, a informação está distribuída por vários organismos, mas o que temos está sempre disponível. Não monopolizamos nada.
Texto: F. Castro
Fotos: Ricardo Gaudêncio