- Dr. Luís Pisco, coordenador da Missão para os Cuidados de Saúde Primários
Unidades de saúde primárias
arrancam antes do Verão
Pilar de sustentação de todo o sistema de saúde, os cuidados de saúde primários estão a ser alvo da maior reforma de sempre, destacando-se dos seus aspectos principais a criação das chamadas unidades de saúde familiar (USF) – estruturas erguidas através de profissionais, que se disponibilizam voluntariamente para trabalhar em equipas auto-organizadas.
Medicina & Saúde® – Como estamos, em termos de reforma dos cuidados de saúde primários?
Dr. Luís Pisco – Estamos na fase inicial. O primeiro passo consiste na criação das USF e o segundo prende-se com a reconfiguração dos centros de saúde, que passarão a ter um grau de autonomia de gestão efectivamente novo no contexto nacional.
O grande objectivo seguinte aponta para a reformulação de todos os cuidados de saúde primários, onde existem serviços de saúde pública, sem esquecer a sua articulação com os hospitais… Mas, para já, as baterias estão viradas para a criação das USF e a sua instalação no terreno e para a reconfiguração e autonomia dos centros de saúde, de maneira a obter um todo coerente no tocante à prestação de cuidados de saúde primários à população.
M&S® – Mas, neste momento, qual é o ponto exacto da situação?
LP – Estamos a falar de uma reforma, cujo andamento decorre um pouco ao contrário do que é habitual na administração pública, ou seja, desenrola-se de baixo para cima. Começa pela identificação das lideranças locais, que podem constituir pólos de aglutinação de outros profissionais – médicos, enfermeiros e administrativos –, que se voluntariem para trabalhar em equipa e se disponibilizem para assumir determinadas responsabilidades. São estes grupos que se candidatam a formar uma USF.
Trata-se de um processo voluntário e a primeira questão era a de saber se havia interessados em fazê-lo. O programa do Governo aponta como limite uma centena de USF até ao final deste ano. Ainda não passou um mês da data de abertura das inscrições e já foram apresentadas 65 candidaturas, que correspondem a quase 500 médicos e outros tantos enfermeiros, o suficiente para abranger mais de 800 mil pessoas.
Mais, pelos aumentos de listas que esta reforma implica, cem mil pessoas que não tinham médico de família vão passar a ter. Parece-me uma mais-valia bastante significativa.
Auto-organização
M&S® – Em que consiste, exactamente, a reorganização dos cuidados de saúde primários?
LP – Há aqui três aspectos importantes em relação aos quais o programa do Governo é muito claro: o primeiro tem a ver com a criação de equipas, que se escolhem a si próprias; o segundo reside no facto de esses conjuntos de profissionais serem formados por voluntários; e o terceiro assenta na auto-organização dos grupos, à frente dos quais estarão coordenadores.
Tais equipas, que se articularão, depois, com os centros de saúde, vão estar sujeitas a um sistema remuneratório sensível ao desempenho. Não se trata, como eu já ouvi dizer, de pagar por acto médico. Nada disso. Os médicos que tiverem mais utentes inscritos na sua lista verão o seu salário crescer. Portanto, se um médico conseguir criar acessibilidade aos doentes e se as pessoas quiserem estar inscritas na sua lista, esse médico deve ganhar mais, em relação ao colega que, por qualquer razão, não quer ver as coisas desta maneira.
M&S® – Como é que os serviços vão fazer essa contabilidade?
LP – Não referi ainda, mas… nenhuma USF começará a funcionar sem estar informatizada. Depois, haverá um sistema de informação e um conjunto de indicadores que serão avaliados e monitorizados. Além disso, está prevista a contratualização, ou seja, as equipas vão poder contratar determinadas metas com uma agência, a qual avaliará, de forma rigorosa, se elas cumprem os objectivos a que se propõem. As que cumprirem serão recompensadas com incentivos, quer pessoais, quer institucionais.
Critério de implementação
M&S® – Qual vai ser, do ponto de vista geográfico, o critério da implantação das USF?
LP – Neste momento, o único critério é o das candidaturas. Como temos apenas uma centena, fizemos… enfim, uma operação, que consistiu na atribuição de um número de USF proporcional à população coberta em cada uma das regiões. Portanto, teremos qualquer coisa como quatro unidades no Algarve, um número igual no Alentejo e 34 no Norte.
Para as 34 vagas do Norte, já surgiram 30 candidaturas, enquanto que Lisboa e Vale do Tejo, cujo andamento nos parece também muito bom, somou, até agora, 20 candidaturas. Na zona Centro, as coisas estão a andar mais lentamente… eu diria mesmo, com alguma dificuldade, pois, não passou ainda das nove.
M&S® – Salientou, há pouco, a importância do sistema remuneratório pensado para as USF. Que outros aspectos da reforma merecem destaque?
LP – Para já, a melhoria da acessibilidade. Como se sabe, uma das queixas mais frequentes das pessoas prende-se com a consulta não conseguida num prazo razoável. Ora, se os cuidados primários são cuidados de proximidade, não faz sentido que o cidadão esteja, muitas vezes, semanas à espera do parecer de um médico sobre o seu estado de saúde.
Por outro lado, pretende-se melhorar a resposta a dar aos problemas agudos. O que se passa, neste momento, desvirtua completamente o procedimento adequado, ou seja, as pessoas com situações crónicas vão aos centros de saúde e os portadores de doenças agudas têm de ir aos serviços de urgência hospitalar ou aos SAP. Isto não é boa qualidade. Os centros de saúde devem ter sensibilidade, capacidade e organização para responderem a situações de doença aguda.
Outro aspecto importante da reforma tem a ver com o trabalho em equipa. Cada USF terá entre três e oito médicos, um grupo igual de enfermeiros e cerca de dois terços deste número de administrativos, para uma população de quatro a 14 mil pessoas. Logo, não se está a promover o trabalho isolado nem as consultas a metro, mas sim a saúde materna, a saúde infantil, o planeamento familiar, enfim… promover a saúde e prevenir a doença, através de cuidados de qualidade.
Ligando tudo o que acabei de dizer à tal avaliação do bom desempenho dos profissionais e ao pagamento desse mesmo desempenho, que irá motivar e pagar maior quantidade de trabalho, mas sobretudo melhor qualidade de trabalho, temos um conjunto apreciável de aspectos muito positivos e inovadores, em termos de saúde pública.
Solidariedade
M&S® – No fundo, em que é que o novo vai ser diferente do actual?
LP – Desde logo, na dimensão. Como não somos um país rico, vamos manter os centros de saúde, que têm um número muito variável de médicos, divididos, cada um deles, em duas ou três USF, com algumas mexidas na arquitectura de interiores, a fim de as distinguir. As pessoas poderão, assim, identificá-las melhor.
A solidariedade entre os membros das equipas é outra vantagem a registar. Se o meu doente vem à tarde e eu não estou, outro médico atendê-lo-á. Numa próxima oportunidade serei eu a fazê-lo. Desta maneira, as pessoas sabem que terão uma resposta não só do seu médico, mas da sua equipa que, tendo em conta a informatização, terá acesso aos processos clínicos de todos os utentes. Como os grupos não têm mais de oito clínicos, ao fim de algum tempo, as pessoas ficam a conhecê-los todos, o que traz vantagens para ambos os lados.
M&S® – Pretende-se que as USF atendam cerca de dois milhões de pessoas…
LP – Esse é o objectivo do programa do Governo. O que temos, neste momento, ficará um pouco aquém disso. Com cem USF, atendendo cada uma, no máximo, 14 mil pessoas, o total rondará 1,5 milhões. Bom, mas isto é apenas o começo da reforma. Aquilo que se espera é uma subida da cobertura, com a eventual abertura, no próximo ano, de mais unidades.
A reforma prevê, como já referi, a reconfiguração dos centros de saúde, os quais, no futuro, serão conjuntos de USF, com vários serviços de apoio: fisioterapia, cuidados continuados, algumas especialidades hospitalares… nutricionistas, psicólogos… Há uma perspectiva de aumentar as equipas multiprofissionais que trabalham nos centros de saúde e de testar um conjunto de outros cuidados, os quais vão trazer, com certeza, mais-valias às pessoas.
Arranque
M&S® – Quando é que arrancam as primeiras USF?
LP – As candidaturas ainda estão a ser recebidas, segue-se a sua aprovação ou não, alguns casos implicam mobilidade de profissionais e a resolução de outros problemas… Tudo tem de ser cuidadosamente avaliado e ponderado, para que não fiquem pessoas sem médico de família (o objectivo da reforma consiste em melhorar as coisas e em aumentar a cobertura e não o contrário).
Existem, por outro lado, instalações a pedir pequenas obras, pelo menos de adaptação, e alguns casos requerem a aquisição de equipamento informático. Ora, como as administrações regionais de saúde (ARS) têm 60 dias úteis para criarem as condições físicas e organizacionais necessárias ao funcionamento das USF, as primeiras arrancam, com certeza, antes da chegada do Verão.
M&S® – Em relação a horários, o que é que está assente?
LP – Os cuidados de saúde primários devem estar abertos das oito às 20 h, mas é possível contratar-se um horário extra de atendimento, se se concluir que isso é benéfico para os cidadãos de determinada zona… por exemplo, periferias de cidades, onde os moradores chegam mais tarde a casa. Neste caso, poderá fechar às 22 ou 23 h, sendo a equipa que se dispuser a «esticar» a jornada de trabalho devidamente compensada.
As unidades até podem, eventualmente, estar abertas aos fins-de-semana… por exemplo, nas manhãs de sábado e domingo. É capaz de ser uma mais-valia, porque permite melhorar a acessibilidade. Mais do que isto, não faz sentido. Para as verdadeiras urgências, fora destes horários, haverá um hospital a uma distância razoável.
Recordo, a propósito, que está a ser feita uma reforma dos serviços de urgência, que é complementar à dos cuidados de saúde primários. Acrescente-se, ainda, a saída do Decreto-Lei sobre os cuidados continuados, uma área até agora muito desprezada em Portugal e para a qual a tutela está a tentar descobrir alternativas.
Fim dos SAP
M&S® – Que sorte está reservada aos SAP e afins (SASU, CATUS e SADU, entre outros)?
LP – Têm de acabar. Cresceram como cogumelos nos últimos anos, são uma fonte terrível de despesa e não têm qualidade: os cuidados não são personalizados, os profissionais não têm acesso às fichas clínicas dos doentes, dão uma falsa tranquilidade, uma vez que não são serviços de Urgência, devido à falta de meios e, em alguns casos, até podem ser contraproducentes. Basta pensar no tempo perdido por alguém que sofra um politraumatismo, um enfarte do miocárdio… Sim, porque vai ficar à espera e acabar por ser enviado para um verdadeiro serviço de
Urgência!
M&S® – A falta de médicos de família será ultrapassada por esta reforma?
LP – Vejamos, ninguém está a tentar fazer o milagre da multiplicação dos médicos. É óbvio que vão ser mais bem aproveitados. Dá-se um incentivo, para que as pessoas aumentem voluntariamente as suas listas, podendo-se, assim, estender a cobertura a mais cem mil pessoas. Mas isto não chega para resolver totalmente o problema da falta de médicos.
Também é certo que há aqui alguma assimetria. A falta de médicos faz-se sentir mais numas zonas do que noutras. Lisboa, Porto, Braga e Setúbal são os distritos onde a falta é mais gritante. Curiosamente, e ao contrário do que se poderia supor, no interior, o grande problema tem a ver com os tais SAP e afins. Para estarem abertas 24 horas por dia, estas estruturas acabam por ser grandes consumidoras de recursos e de pouco valerem, uma vez que são pseudo-serviços de Urgência.
Oportunidade histórica
M&S® – De qualquer maneira, a criação das USF constitui uma oportunidade histórica para reformar os cuidados de saúde primários?
LP – Sem dúvida nenhuma. Penso que raramente é dada esta oportunidade aos profissionais de qualquer ramo de se poderem organizar em equipas para participarem numa mudança tão importante. Os cuidados de saúde primários constituem o pilar de sustentação de todo o sistema de saúde. Depois, trata-se de uma aposta na qualidade, na motivação e na imaginação das pessoas para organizar novas formas de trabalhar.
M&S® – As mudanças previstas não eram possíveis apenas com uma reestruturação profunda nos centros de saúde?
LP – Bom, não nos podemos esquecer que a Dr.ª Maria de Belém tentou reformar os centros de saúde e não teve sucesso, o mesmo tendo acontecido com o Dr. Luís Filipe Pereira. Porque não é impondo isto ou aquilo que se consegue mudar as coisas. Nós preferimos seguir por outro caminho, dando oportunidade às equipas para auto-organizarem-se.
Além disso, demos-lhes condições para trabalharem bem e vamos avaliar aquilo que elas fizerem. Esperamos que isto motive os outros a aderir ao modelo de reforma posto em marcha.
Mas isto não significa que os centros de saúde vão fechar ou ficar como estão. Não. Nós vamos reconfiguar os centros de saúde, organizando-os de maneira diferente. As USF vão pertencer a estas estruturas e, como eu já referi, algumas funcionarão mesmo no seu espaço.
Texto: F. Castro
Fotos: Celestino Santos