Artigo de Medicina e Saúde®
Nº 102 / Abril de 2006
08 Entrevista - Dr. Aranda da Silva, bastonário da Ordem dos Farmacêuticos
PREÇO DOS MEDICAMENTOS TRIPLICAVA COM A LIBERALIZAÇÃO DAS FARMÁCIAS
O bastonário dos farmacêuticos mantém a opinião de que o lugar destes profissionais é num espaço de saúde e não num supermercado e alertou para os riscos resultantes da venda de medicamentos fora das farmácias, um dos quais pode ser o agravamento da sua má utilização, por falta de informação qualificada.
Texto: F. Castro
Medicina & Saúde® – Quais são as prioridades da Ordem dos Farmacêuticos para o médio e longo prazos?
Dr. Aranda da Silva – A direcção nacional da Ordem dos Farmacêuticos elabora todos os anos um plano de actividades, no qual são estabelecidas prioridades.
Para 2006, a mais importante prende-se com a qualidade e a demonstração da sua evidência, que são requisitos fundamentais para a assunção de responsabilidades, em relação às melhores práticas profissionais.
O nosso sistema de qualidade, que abrange laboratórios de análises clínicas é, talvez, um dos mais importantes da rede da saúde.
A qualificação faz, igualmente, parte do nosso quadro de preferências para o ano em curso. A formação e o aperfeiçoamento profissional contínuo dos farmacêuticos são, com efeito, ferramentas indispensáveis para um desempenho de excelência, adequado à salvaguarda dos interesses dos doentes e da sociedade em geral. Recordo, a propósito, que o exercício da actividade farmacêutica tem como objectivo principal a pessoa do doente.
Por isso, vamos fazer tudo por uma cada vez melhor actuação, competência e excelência profissional, numa altura em que se prevêem mudanças nos hábitos e nas práticas da população servida por nós.
M&S – Mas como é que o aperfeiçoamento profissional é demonstrado?
AS – Entre outras provas, os farmacêuticos têm de mostrar, de cinco em cinco anos, que participaram em acções de formação profissional. Cada acção é creditada e, no final de cada ano, procede-se à soma dos créditos, que não deve dar mais de três. No fim dos cinco anos, o farmacêutico terá os 15 créditos necessários à renovação da sua carteira profissional.
M&S – Mais prioridades?
AS – A nova sede nacional da Ordem, por exemplo. Adquiriu-se, em 2005, espaço para o efeito, e dar-se-á este ano sequência à sua edificação, que acolherá também a Secção Regional de Lisboa, passando ambas a ocupar, na Alameda dos Oceanos, no Parque das Nações, um edifício moderno e adequado às crescentes responsabilidades e tarefas acometidas à instituição representativa dos farmacêuticos portugueses.
O envolvimento e participação dos farmacêuticos no projecto da sua nova sede constituem, assim, também ao nível da instalação e equipamento da sua instituição mais representativa, outra oportunidade de evidenciar a mobilização e organização características da classe.
Também vamos trabalhar no sentido de uma melhor integração do farmacêutico na equipa de saúde. Em tal sentido, a Ordem dos Farmacêuticos propõe-se estimular o estabelecimento de sinergias de intervenção entre profissionais, de modo a serem alcançados, de uma forma positiva, importantes benefícios, tanto para os doentes, como para o nível da saúde do país. A criação de canais de comunicação e a promoção de iniciativas conjuntas entre farmacêuticos, médicos e enfermeiros, constituirá um relevante vector de intervenção da Ordem em 2006.
O lugar do farmacêutico
M&S – Mantém a opinião segundo a qual o lugar do farmacêutico é num espaço de saúde e não num supermercado?
AS – Repare: a profissão farmacêutica sofreu uma grande viragem na década de 80, não só em Portugal, como em quase todo o mundo, com a sua reorientação no sentido do doente. Isto é, o farmacêutico, que até meados do século passado estava fundamentalmente ligado à preparação e análise de medicamentos e à execução de análises clínicas e outras, como as de alimentos e de águas, perante a evolução do sistema de saúde e a cada vez maior complexidade dos fármacos inovadores, viu, por um lado, a necessidade de ver aumentada a sua capacidade de diferenciação técnica, de forma a poder responder às mudanças referidas e, por outro lado, viu-se obrigado a “mudar de agulha”.
Quer dizer, tornou-se imperioso demarcar, de uma forma mais clara, a acção do farmacêutico num espaço de saúde, ou seja, o farmacêutico afirma-se como um profissional de saúde…
M&S – Que lhe parece esse modelo?
AS – Nada exemplar… até porque, se analisarmos os sistemas de saúde de tais países, em especial o americano, verificamos que não conduz a grandes ganhos, nomeadamente na área do medicamento. Por isso, vale a pena insistir numa questão que tem sido um pouco ocultada: nos países, cujos governos optaram pela grande liberalização do sector das farmácias, e em especial onde elas têm aspecto de supermercado, os fármacos são muito mais caros.
Vejamos o que se passa, por exemplo, nos países já referidos: nos Estados Unidos da América, a maior parte dos medicamentos custam, em média, três a quatro vezes mais do que em Portugal. No Reino Unido, ficam-se pelo dobro. Este é um dos resultados da liberalização. Não é difícil comprovar o que aqui fica dito.
Liberalização resulta na concentração das farmácias
M&S – Mas a Autoridade da Concorrência não afirmou que uma das vantagens da liberalização do sector reside, precisamente, na baixa de preços?
AS – Afirmar, afirmou, mas…que grande engano! Não há exemplos europeus de que o preço dos medicamentos baixou com a liberalização. Na minha opinião, da liberalização do sector resultaria a concentração das farmácias em meia dúzia de empresas, que liderariam o mercado. Se a farmácia como espaço de saúde funciona bem, por que carga de água querem destruir o sector? Só poderá ser para o entregar a quem tiver interesses económicos na área.
Insisto: não se vislumbram vantagens no modelo americano e semelhantes, tanto em termos de custos, porque são mais onerosos, como em termos de saúde, pois a participação do farmacêutico, na qualidade de profissional de saúde, não é uma prioridade naqueles países, ao contrário do que se verifica, por exemplo, em Portugal, onde as farmácias são consideradas espaços de saúde.
Não é por acaso que somos, hoje, protagonistas fundamentais do sistema de saúde, condição provada através de programas desenvolvidos nas áreas da diabetes, da hipertensão, da asma, das doenças cardiovasculares, entre outras. É este o grande sentido estratégico da profissão, cuja orientação está mais virada para o serviço prestado à população, do que para a dispensa mecânica de fármacos sem valor acrescentado. Hoje, a acção terapêutica não dispensa a ajuda do farmacêutico, que pode ser igualmente dirigida para o campo da boa utilização dos medicamentos.
M&S – Também acha que a farmácia deve continuar a ser propriedade do farmacêutico?
AS – Como já disse, existem dois modelos de farmácias no mundo… aliás, três: o anglo-saxónico, que é minoritário na Europa (está implantado na Irlanda, Estados Unidos da América e, de uma forma mitigada, na Bélgica), o europeu continental, onde estamos integrados, e o estatal, cujo domínio está limitado a alguns países subdesenvolvidos mais atrasados e à Suécia.
O modelo predominante na Europa (o nosso), associa a direcção técnica à propriedade, situação que dá ao farmacêutico liberdade de actuação… Isto é, permite-lhe uma prática profissional independente, portanto, não sujeita aos grandes interesses económicos, como acontece nos países, onde as farmácias estão, normalmente, sob a alçada de duas ou três cadeias empresariais.
M&S – Existe alguma situação, assim, na Europa?
AS – A Noruega é o melhor exemplo. Neste país, que não pertence à União Europeia, a liberalização das farmácias verificou-se no ano 2000 e hoje, início de 2006, o sector pertence a três grandes grupos económicos. Isto significa, que ali deixou de haver estabelecimentos de preparação e venda de medicamentos independentes.
Também temos o caso da Islândia, onde a liberalização aconteceu recentemente. Das suas pouco mais de 60 farmácias (trata-se de uma pequena república insular do Atlântico Norte, com cerca de 200 mil habitantes), apenas uma permanece independente.
Não tenho dúvidas: da liberalização resulta, fatalmente, a entrega das farmácias a grandes grupos económicos que, mais tarde ou mais cedo, capturam os interesses do Estado. Não esqueçamos que este continua a ser, na esmagadora maioria dos países europeus, o principal financiador do sistema de saúde.
Nós temos um exemplo muito claro em Portugal com o sistema de hemodiálise. A sua captura por parte de duas grandes empresas está criar sérias dificuldades na negociação dos preços.
Acesso igual
M&S – A concorrência, tal como está a ser praticada no sector das farmácias, continua a ser vista pela Ordem como um dos pilares da saúde pública?
AS – A total liberdade de escolha por parte de cada cidadão, em relação à farmácia que lhe presta assistência, origina o estímulo concorrencial mais adequado, colocando o seu foco na qualidade do serviço prestado.
Contrariamente ao que se tem insinuado, há uma verdadeira concorrência no sector, em particular entre farmácias, com benefício directo para os cidadãos. Querer introduzir concorrência em âmbito diferente da prestação da qualidade de serviço é, antes de mais, fomentar distorções na sociedade e condenar o acesso a medicamentos a diferentes níveis de cidadania, consoante a localização da farmácia mais próxima do cidadão.
Se se avançar para uma liberalização do sector, o resultado é perfeitamente antecipável: a exemplo do que aconteceu no Reino Unido, assistiremos à abertura indiscriminada de farmácias apenas em centros urbanos, com a pesada factura social da discriminação daí resultante.
Não é por acaso que nós defendemos o modelo de farmácia predominante na Europa. Continua a ser o que melhor defende os interesses quer dos doentes quer do Estado, como principal financiador do sistema de saúde.
M&S – Tanto em termos de acessibilidade, como em termos de serviços?
AS – Sem dúvida. Este modelo garante uma qualidade de serviço associada ao exercício profissional do farmacêutico, que é proprietário e garante o controlo dos próprios preços. Nos países onde há liberalização, os preços são, normalmente, muito mais altos.
O que se pretende fazer em Portugal, através de algumas medidas, é isto: regular o mercado de um produto muito específico, que está associado à saúde e cuja saída cá para fora é feita de uma forma controlada e com preço fixo, como se se tratasse de batatas, arroz ou feijão! Nós não podemos concordar, principalmente, porque daqui não resulta qualquer benefício para a população.
Estudos feitos em países onde o mercado foi regulado assim, dizem isto mesmo nas suas conclusões, ou seja, não se registaram ganhos para a população, nem em qualidade de serviços nem em preços.
Pílula do dia seguinte
M&S – A venda da pílula do dia seguinte fora das farmácias gerou controvérsia. Qual é a sua opinião?
AS – Bom, a pílula do dia seguinte pode ser dispensada em qualquer local, independentemente de se tratar de uma farmácia ou não, visto que não está sujeita a receita médica. No entanto, entendemos que deve haver algumas cautelas na utilização deste medicamento. Por essa razão, foram elaboradas há três anos algumas normas de orientação, de acordo com as quais os farmacêuticos devem conversar com as pessoas, no sentido de verificarem se a pílula vai ser tomada como anticoncepcional de urgência ou não.
Registaram-se algumas queixas contra as farmácias pela não dispensa do medicamento em causa, as questões foram analisadas pelos conselhos jurisdicionais e, na maior parte dos casos, a conclusão foi a de que se estava perante uma prática de utilização da pílula do dia seguinte como método anticonceptivo de rotina. Isto é condenável e envolve riscos.
M&S – A propósito… pensa que é preciso estreitar mais a aproximação entre o farmacêutico e os doentes?
AS – Eu julgo que sim, apesar de a distância já ser curtíssima. De acordo com os vários inquéritos de opinião realizados nos últimos anos, o farmacêutico é o profissional com melhor imagem em todo o sistema de saúde. No entanto, eu acho que é necessário melhorar essa aproximação, de forma organizada e estruturada.
O problema que se põe muitas vezes, tem a ver, exactamente, com a falta de programas estruturados, que permitam melhorar a informação dada pelos farmacêuticos aos doentes, melhorar a adesão à terapêutica, etc. Não nos podemos esquecer, que o melhor acesso ao nosso sistema de saúde é, por um lado, o centro de saúde, mas é, fundamentalmente, a farmácia. No primeiro, ainda temos de marcar uma consulta, e no segundo, encontramos a porta sempre aberta.
Desperdício enorme
M&S – De acordo com um estudo recente, quase metade dos fármacos prescritos acabam por não ser utilizados. Que grupos de medicamentos predominam neste desperdício?
AS – Não conheço bem esse estudo, mas está a ser feito um outro, por um grupo de Coimbra associado à universidade local e à Administração Regional de Saúde do Centro, que deverá ser publicado no final do primeiro trimestre deste ano, mas cujos dados preliminares apontam para um grau de desperdício enorme. A situação resulta, naturalmente, de uma má adesão às terapêuticas prescritas pelo médico.
Só vejo uma maneira de o atenuar, que é através de uma forma organizada de aconselhamento ao doente, por parte do farmacêutico que, para isso, terá de ter uma intervenção mais alargada...
M&S – Entretanto, somam-se os prejuízos para o Estado, que comparticipa, e os riscos para a saúde… Em muitos casos, o desperdício é guardado, acabando por ser utilizado mais tarde, através de automedicação…
AS – Sim, porque… repare: a questão da não adesão à terapêutica, é gravíssima! Vejamos, por exemplo, o caso dos antibióticos. Um doente vai ao médico, que lhe prescreve um fármaco destes com a indicação para ser utilizado, de forma contínua, durante dez dias. Acontece que o paciente sentiu-se melhor antes do tempo previsto e deixou de tomar o medicamento.
Isto pode criar, a médio prazo, alguns problemas: o aumento da possibilidade de aparecimento de resistências ao antibiótico e a cura incompleta da infecção, são dois deles. Os anti-hipertensores são outro exemplo. A hipertensão é uma doença que não se sente e, muitas vezes, os doentes deixam de tomar os anti-hipertensores receitados.
Resultado: podem sofrer um acidente vascular cerebral (AVC) ou uma crise hipertensiva grave. Referi dois tipos de medicamentos, mas podia referir muitos mais.
M&S – Tanto desperdício, quando temos dos medicamentos mais caros da Europa… Não é assim?
AS – Não… não é bem assim. Em Portugal, o preço médio dos medicamentos está ao nível do preço médio praticado nos outros países europeus. Há, no entanto, alguns medicamentos, que são dos mais consumidos pelos portugueses, cujo preço se situa acima do de muitos países da Europa.
Tudo se deve a uma fragilidade da legislação sobre o preço dos medicamentos, situação que foi detectada e vai ser corrigida. Os preços praticados no nosso país devem ser iguais aos de Espanha, França e Itália.