Artigo de Medicina e Saúde®
Nº 101 / Março de 2006
06 Entrevista - Prof. Henrique Barros, coordenador nacional da SIDA
«A SIDA e a infecção VIH não existem isoladas dos outros problemas de saúde»
O Prof. Henrique Barros, 47 anos, dirige a Coordenação Nacional da Infecção VIH/SIDA, sob a tutela do Alto-Comissariado da Saúde. Em entrevista conjunta à Medicina & Saúde® e à Informação SIDA® , Henrique Barros falou sobre este novo desafio.
Medicina & Saúde® - Aceitou esta missão porquê?
Prof. Henrique Barros – A situação quantitativa da infecção, tanto quanto ela era conhecida, atinge níveis preocupantes. Nesse sentido torna-se um desafio aliciante, passar de um discurso e pensamento sobre as coisas, para assumir a responsabilidade directa em ajudar a modificá-las. É essa a razão que me fez aceitar este desafio.
M&S - A grande diferença que existe entre a antiga Comissão Nacional de Luta contra a SIDA e esta coordenação é a proximidade com o executivo...
HB – Está mais próxima de todo o processo da saúde...
M&S - E que vantagens é que isso traz?
HB – A vantagem fundamental é que a SIDA e a infecção VIH não existem isoladas dos outros problemas de saúde. Nomeadamente a própria mudança na natureza da infecção. Essa tende a transformar-se num problema que, não tendo cura, transforma-se num mal crónico. E assim mais se aproxima dos outros problemas de saúde. Faz mais sentido que o VIH/SIDA seja discutido nesse conjunto e não fora dele.
M&S - Vai andar muito no terreno?
HB – O fundamental é andar no terreno. Não no sentido de executar tarefas, mas no sentido de nos apercebermos muito exactamente quais são os problemas, quais as soluções e incentivá-las o mais possível. Não só de uma forma útil, mas também rápida.
M&S - Concorda obviamente com os números lançados este Verão pelo Instituto Nacional de Saúde Ricardo Jorge. São 27 013 infectados em Portugal. Houve aumento entre heterossexuais, diminuição entre toxicodependentes e subida em pessoas com mais de 50 anos.
HB – Em relação a isso não há discordâncias nem concordâncias. Suponho que o que está por detrás da sua pergunta é saber em que medida estes números são fiáveis.
M&S - É isso mesmo.
HB – A fiabilidade dos números é um dos desafios que temos no futuro mais próximo. Ou seja sabermos utilizar as técnicas que temos disponíveis para testarmos a solidez da informação. Saber qual é a dimensão da subnotificação que existe sempre em todas as doenças e em todas as sociedades. E que é fundamental reduzir ao mínimo possível.
Há também que conhecer o risco real. Quando nos referimos ao aumento do número de infecções entre heterossexuais e à diminuição do número de infecções entre utilizadores de drogas endovenosas ou descida do número em homens que fazem sexo com homens, isto significa que estamos a ver apenas a relação proporcional. Estamos a assumir que as pessoas em risco não mudam. Mas isso pode não ser verdade. Não temos a dimensão exacta do risco real.
E não sabemos, de igual modo, qual é a taxa de transmissão em Portugal. É importante que rapidamente sejamos capazes de usar os sensores possíveis para reconstituirmos essa informação de que modo a que possamos responder a essas perguntas. E porque é que essas perguntas são importantes? Não é pela obsessão pela precisão do número, mas para termos pelo menos, numa ordem aceitável de grandeza, o impacto das medidas que nós tomamos.
M&S - O que pretende para esta CNIS?
HB – Eu quero que esta instituição do Ministério da Saúde português cumpra a função que dela se espera. Ou seja, que ajude a conhecer a dimensão do VIH/SIDA em Portugal. Ser útil na quebra da importância quantitativa desta doença em Portugal. Fazer com as pessoas doentes vivam melhor com a sua patologia. Promover prevenção primária. Assegurar equidade no tratamento e incentivar o recurso aos cuidados e ao apoio que as pessoas infectadas necessitam.
M&S - Concorda com a notificação obrigatória? E funciona?
HB – É impossível sabermos se a notificação obrigatória foi ou não a boa solução, porque isso não foi testado. Não me parece pessoalmente que fosse uma prioridade. Agora há uma componente de obrigação legal que não existia antes. Mas eu penso que é importante frisar o seguinte: a declaração, mais do que uma obrigação legal, é sobretudo um imperativo ético. E a declaração de uma doença, que tem impacto naturalmente em termos de Saúde Pública e que pode ajudar a conter um problema, é um imperativo ético do médico e faz parte do todo da sua actividade perante cada indivíduo que o procura.
M&S - Considera legítima a exigência de análise VIH aos candidatos ao serviço militar?
HB – Não. Não há qualquer razão para obrigar a fazer o teste por razões profissionais. Até porque fica depois uma pergunta no ar: faz-se alguma selecção à partida, mas está-se aqui a esquecer que o grande veículo de transmissão da infecção na população em geral tem a ver com actividade sexual. E isto cria uma escalada obsessiva de realizações de testes que não faz sentido até do ponto de vista de organização dos cuidados.
M&S - Quem são os grupos que considera saber menos e os que não querem saber sobre VIH/SIDA?
HB – Os poucos dados que existem, estranhamente, evidenciam que há muita desinformação ou má informação, um pouco transversalmente. Claro que em todas as sociedades existe uma relação entre informação e educação. É muito fácil responder que os grupos sociais e etários em Portugal com menor grau de educação são aqueles que naturalmente menos informação têm. Nós não sabemos, honestamente, qual é a dimensão desse défice.
Não sabemos sobretudo em que medida é que meios de informação fora do sistema educacional – os jornais, as televisões, as rádios, os pares em geral – têm sido capazes de ajudar a preencher essas dificuldades. Mas o facto de Portugal apresentar uma taxa tão elevada de infecção, de não conseguir descolar da cauda da União Europeia e com uma diferença importante da maior parte dos países membros, mostra que alguma coisa estará a falhar.
M&S - E há quem não queira saber. Quem teime não usar o preservativo, por exemplo...
HB – Sim. Isso é expressão de uma certa ignorância, particularmente relevante. Muitas vezes tem associada alguma sobranceria, porque tem a ver com uma ideia estúpida de que a infecção só afecta determinados grupos de pessoas. Há gente que, por nunca ter tido determinados comportamentos, imagina que está imune a qualquer perigo. O que é obviamente falso.
M&S - A questão das resistências está cada vez mais na ordem do dia. Há casos em os medicamentos actualmente utilizados na terapêutica VIH/SIDA só revelam eficácia em apenas 16% dos doentes...
HB – Aqui há um aspecto desvantajoso: a não aderência à terapêutica. Seja por razões de incapacidade física perante a lógica da prescrição, seja por razões sociais, culturais ou comportamentais. Mas em qualquer destas circunstâncias está-se a diminuir por um lado a taxa de sucesso e está-se a contribuir para facilitar a estratégia do agente.
M&S - E essa questão vai fazer parte do seu trabalho?
HB – Seguramente. Há dois aspectos que nós temos que conhecer. Por um lado, o conhecimento epidemiológico, que nos fornece a dinâmica da infecção, onde também entra a mudança das características do agente.
M&S - Piercings e tatuagens: Portugal, ao contrário do que já recomendou a União Europeia em 2003, não tem legislação específica na matéria. Qual é a sua opinião sobre o assunto?
HB – Essa questão é importante não só por causa da infecção VIH/SIDA mas também devido às hepatites B e C. Tem sido difícil determinar o risco absoluto associado a essas práticas. Nomeadamente, porque havia, na maior parte das pessoas, a concorrência de outros possíveis factores associados à transmissão da infecção.
No conjunto das informações que dispomos, sabemos que os agentes infecciosos transmissíveis por via percutânea são passíveis de serem transmitidos quando se fazem tatuagens ou piercings com material reutilizável. Portanto a regra de precaução genérica é muito simples: uma pessoa, um conjunto de material. Ponto.
Nota: Versão alargada na Informação SIDA® de Março-Abril, 2006.
Texto: David Carvalho
Fotos: Celestino Santos