- Dr. Dionísio Martos
A diabetes mellitus afecta cada sistema e cada órgão do corpo.
Desta forma não devemos surpreender-nos que afecte o órgão mais extenso da anatomia humana, ou seja, a pele, que pode evidenciar numerosas alterações e manifestações relacionadas com esta doença.
Embora se desconheça a patogénese de muitas das afecções cutâneas da diabetes, é certo que a maioria destas afecções são facilmente reconhecidas pelo clínico através de um simples exame visual (as bolhas diabéticas, a dermatopatia diabética, a disidrose, a xerose, descoloração da pele, etc.).
Algumas destas alterações parecem ser causadas pelas complicações da diabetes, como é o caso da vasculopatia e neuropatia. Outras alterações são causadas por alterações imunológicas e por alterações da estrutura do colagénio; outras ainda são uma consequência do tratamento.
Embora estas alterações dermatológicas apareçam geralmente após o desenvolvimento da diabetes, algumas podem ocorrer no início da doença. É importante realçar que muitas destas alterações e complicações surgem muitas vezes nas áreas inferiores das pernas e dos pés.
O objectivo deste artigo é rever as manifestações dermatológicas da diabetes que afectam os pés, bem como a prevenção e tratamento das mesmas.
De facto, não há dúvida de que a alteração dos níveis de glicemia é uma condição para o aparecimento e desenvolvimento de alterações da funcionalidade das estruturas dérmicas em doentes diabéticos.
Prevenção das dermatopatias podológicas em doentes diabéticos
Sem dúvida que o tratamento preventivo das dermatopatias do pé em doentes diabéticos deve começar por manter os níveis de glicemia e hemoglobina glicosilada controlados. Os níveis destes parâmetros bioquímicos recomendados pela ADA são de 126 mg/dl para a glicemia e de 6,5% para a hemoglobina glicosilada.
Para além destas recomendações gerais, existem outras de carácter particular que devem ser igualmente tidas em conta, como a escolha adequada de calçado e meias, a inspecção periódica por parte do próprio doente e as visitas periódicas ao podologista.
A quantificação do risco deve envolver um exame do pé e a realização de uma gradação de risco que, segundo a tabela 1, equivale a uma determinada actuação (prevenção primária)
Seguindo as recomendações anteriores, o podologista realizará um tratamento preventivo para evitar que existam lesões, com base na discriminação de pontos de risco, aplicação de próteses correctivas ou almofadadas e realização de descargas destes pontos de conflito (prevenção secundária) (tabela 2).
No caso de existirem novas lesões ou revisão de lesões já existentes, o podologista deverá realizar o diagnóstico diferencial das mesmas, assim como instaurar o tratamento oportuno para cada uma delas.
Tratamento preventivo na neuropatia
O Grupo Internacional de Trabalho do Pé Diabético, na sua reunião em Amesterdão, em 1999, definiu o conceito de pé diabético como uma «infecção, ulceração e/ou destruição de tecidos profundos associados a transtornos neurológicos e a vários graus de patologia vascular periférica na extremidade inferior…».
Existem três tipos de neuropatia diabética:
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Neuropatia sensitiva: «responsável pela perda da sensibilidade protectora».
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Neuropatia motora: «responsável por alterações morfológicas: dedos em garra, sobrecargas metatársicas,
Hallux valgus, deformidade de Charcot, etc.».
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Neuropatia autónoma (sistema nervoso vegetativo): «responsável pelas alterações que se produzem a nível dérmico».
As repercussões sensitivomotoras são: contractura, dedo em garra, sobrecarga metatársica, hiperqueratose, úlcera, infecção, osteomielite e amputação. Inicialmente ocorre um trauma imperceptível para o doente, uma vez que este possui uma perturbação sensitiva que é a primeira das neuropatias que podem aparecer no doente, o qual constitui uma porta de entrada de microorganismos que vão colonizar aquela área podendo produzir uma infecção. É fundamental uma intervenção multidisciplinar nas diversas fases (contractura, hiperqueratose, úlcera e infecção) para evitar chegar à amputação.
A fase da hiperqueratose é indolor para o doente; apenas quando surge a infecção é que se torna dolorosa.
No que respeita às bases etiopatogénicas da neuropatia autónoma ou do sistema nervoso vegetativo (inervação simpática), considerando uma porção da pele, vemos que as papilas cutâneas encontram-se vascularizadas por uma unidade funcional constituída por uma artéria, arteríola, capilar, vénula e veia. Precisamente entre a artéria e veia existe um
shunt que em condições normais deve estar completamente fechado, ou seja, quando a terminação nervosa se encontra em condições normais.
Quando ocorre uma afecção do nervo simpático, o
shunt arteriovenoso abre, aparecendo uma dilatação do capilar que exsuda líquido para o exterior originando um edema neuropático, pelo que os eritrócitos passam pela abertura do
shunt arteriovenoso, não chegando à papila. Assim, ocorre uma diminuição da pressão parcial de oxigénio. Ocorre uma alteração relevante de toda esta porção cutânea, com repercussão ao nível das glândulas sudoríparas e das glândulas sebáceas.
Assim, com a afectação do sistema nervoso vegetativo parassimpático e, posteriormente, com a afectação do sistema nervoso simpático, os sistemas afectados são o sudoromotor e o vasomotor:
– Diminuição da sudorese
– Diminuição da produção do manto ácido protector
– Falta de resposta adaptativa às alterações de temperatura
– Edema neuropático
– Alterações circulatórias (abertura de shunts arteriovenosos com repercussão no pé de Charcot).
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A falta de sudorese vai levar a que a pele fique ressequida, produzindo prurido e lesões. Para além disso, a pele fica com tendência para gretar. Todo este conjunto de factores leva a que a pele fique debilitada, conduzindo a um elevado risco de lesão.
A perda do manto ácido protector conduz, por um lado, a uma alteração do pH, que origina um desequilíbrio microbiológico e, por outro lado, a uma perda da barreira protectora, que leva a que a flora microbiológica saprófita se transforme em patogénica. Esta combinação de factores conduz a um elevado risco de infecção.
As alterações circulatórias conduzem a isquemia tissular e a alterações na resposta celular que originam alterações na resposta inflamatória, que se traduz num elevado risco de infecção e resistência ao tratamento antibiótico. Assim, uma vez lesionado o pé, e sendo o pé diabético caracterizado por polineuropatia, doença vascular periférica e infecção, verifica-se um atraso na cicatrização.
Um estudo sobre as afecções podológicas em doentes diabéticos com idade superior a 60 anos, conduzido na Andaluzia em 2004 e realizado pelo Colégio de Podologistas de Andaluzia, teve as seguintes conclusões:
– Estudo realizado com uma amostra de 811 doentes diabéticos com mais de 60 anos (0,9% da população diabética andaluza possui mais de 60 anos);
– 70% dos doentes diagnosticados com diabetes apresentaram polineuropatia diabética;
– 30% dos doentes diabéticos apresentaram alterações dermatológicas derivadas da neuropatia autónoma;
– A neuropatia é uma patologia irreversível e sem tratamento etiológico (apenas tratamento preventivo);
– Nestes casos, a manutenção dos valores de glicemia em jejum abaixo de 126 mg/dl (segundo a Associação Americana da Diabetes), juntamente com a prevenção, são os únicos tratamentos actuais disponíveis.
O melhor tratamento preventivo da patologia de pele no pé diabético afectado por polineuropatia é a hidratação da pele.
Deve procurar-se uma formulação farmacológica que seja de aplicação tópica e cuja principal função seja a hidratação e um efeito emoliente (ureia).
As características que essa formulação deve possuir são as seguintes:
– Fácil aplicação;
– Boa difusão através da pele;
– Boa tolerância;
– Efeito antipruriginoso (polidocanol);
– Efeito reparador de fissuras e gretas (ácido hialurónico, aloé-vera,
beta-glucan);
– Efeito controlador do equilíbrio da flora microbiana (
bioecolia);
– Efeito activador da circulação sanguínea;
– Efeito duradouro – pelo menos 12 horas.
Dr. Dionísio Martos
Podologista com Master em Cirurgia Podiátrica pela Universidade Complutense de Madrid e pelo Newark College of Podiatry Medicine