Artigo de Mundo Médico®
Nº 54 / Setembro e Outubro de 2007
36 Disfunção das cordas vocais? Trabalho de equipa!
- Dr. Mário Morais de Almeida
Caso 1: O Carlos, que tem 9 anos de idade, é um menino alegre e bom aluno; que pena a sua vida ser atormentada nos últimos anos por tanta falta de ar. Muitas idas à urgência, nada resulta. Porque é que os outros asmáticos melhoram e ele não? Será que não é asma?
Caso 2: A Sandra é uma adolescente exemplar, e no atletismo é o orgulho de todos. Apesar de ter asma desde a infância, a sua actividade física não foi prejudicada. Fazendo a medicação de controlo, os resultados foram sempre excelentes. No último ano passou a fazer parte da selecção nacional, mas em algumas provas, «nas mais importantes», passou a referir muita falta de ar, diferente das crises de asma que tão bem conhecia. E quanto mais pensava no assunto pior. Parecia que a estavam a sufocar. «Que aperto no pescoço.» Será que não é só asma?
Caso 3: Amélia tem 68 anos e sempre gostou muito de trabalhar no campo. A família não quer, mas a ida à horta é que não dispensa. Há alguns meses, após uma forte constipação, ficou algum tempo com rouquidão e fazia barulho a respirar, mas o que a incomoda mais, desde sempre, é a azia e as dores de estômago. Parece que tem falta de ar e até a medicaram para a asma, mas ficou na mesma. Ela bem diz que o mal está na garganta, sempre irritada. Amélia terá razão?
O convite para abordar a temática da disfunção das cordas vocais (DCV) num simpósio da Academia Europeia de Alergologia e Imunologia Clínica despertou-nos uma enorme curiosidade: é uma situação que observamos com regularidade na prática clínica, mas que nos colocava uma dúvida – suscitaria o interesse dos participantes em Gotemburgo? A resposta foi positiva, isto é, salão cheio, discussão entusiástica, dúvidas imensas.
Definida como uma adução paradoxal dos 2/3 anteriores das cordas vocais, com predomínio inspiratório, a DCV pode manifestar-se por clínica que varia de formas ligeiras a situa-ções muito graves.
Tem tido múltiplas designações desde as referências do Século XIX, quando era considerada uma manifestação de histeria. Em 1983, Christoffer, avaliando doentes com asma não controlada, sem resposta ao tratamento, descreveu a alteração inspiratória típica da laringe, propondo a designação de DCV. Muito recentemente, o mesmo autor propôs a designação de «doenças com movimentação paradoxal das cordas vocais», valorizando a heterogeneidade destes quadros.
Sendo uma situação pouco conhecida e diagnosticada, a sua prevalência na população geral é desconhecida. Ocorre em todos os grupos etários, sendo mais frequente no género feminino. Em indivíduos com dispneia de esforço, incluindo em atletas de alta competição, terá uma prevalência superior a 10% ou mesmo 20%; têm sido estimadas percentagens semelhantes em asmáticos com formas refractárias ao tratamento convencional, nomeadamente justificando múltiplos internamentos e corticoterapia sistémica mantida.
Dos indivíduos com DCV, cerca de metade têm também asma, o que realça a dificuldade da atribuição dos sintomas a cada uma das situações e, por vezes, a pouca atenção dada às alterações funcionais inspiratórias, que alertam para patologia extratorácica. E o tratamento é muito diferente…
De facto, se a asma é uma doença muito frequente, afectando cerca de um milhão de portugueses, nem toda a dispneia é asma, mesmo em asmáticos, isto é, o diagnóstico diferencial deve estar presente e as co-morbilidades não devem ser esquecidas.
É reconhecido que o diagnóstico de DCV é muito tardio, relacionando-se com um enorme consumo de cuidados médicos, sendo que o carácter intermitente dos sintomas dificulta a observação directa das cordas vocais, elemento fundamental para um diagnóstico correcto.
Quanto à etiopatogenia, existem factores precipitantes orgânicos (exs. refluxo faringolaríngeo, irritantes, rinorreia posterior) e não orgânicos (exs. stress, ansiedade), que activam uma ou várias vias de resposta, com hipersusceptibilidade laríngea, alteração regulatória do sistema nervoso autónomo, estimulação directa das terminações nervosas ou hiperventilação.
Para além dos factores psicogénicos, frequentes, especialmente quando coexiste asma e em atletas, tem vindo a ser cada vez mais valorizada a importância do refluxo faringolaríngeo, do lactente ao idoso. Em séries de doentes com DCV encontraram-se, com muita frequência, alterações laríngeas relacionadas com a presença de conteúdo do tubo digestivo.
Pensemos então mais neste diagnóstico, suspeitemos mais, por exemplo, em situações de dispneia atípica, particularmente relacionadas com esforço físico, e também em asmáticos. Não esquecer a extrema relevância do refluxo faringolaríngeo, para além dos factores irritativos e psíquicos mais citados.
E a laringoscopia é o método que permite o diagnóstico. Ou seja, a observação em tempo útil pelo otorrinolaringologista é mandatória.
E quanto às alterações típicas, mesmo em período intercrítico, podemos tentar que sejam reproduzidas. E, se existem, devem ser mostradas ao paciente e/ou aos seus familiares.
Se o diagnóstico finalmente é colocado, então educação, técnicas de autocontrolo, terapia da fala e controlo de factores precipitantes permitem limitar os efeitos desta patologia, que pode ser muito perturbadora. Assim o prognóstico será bom.
Mas se o diagnóstico está escondido… deixem que lhes conte algo que marcou o início da minha actividade clínica:
Caso 4: A Catarina é uma jovem adulta, saudável. Na infância, quando a conheci, vivia com muitas limitações. Muitos internamentos por asma, em vários hospitais. Nenhuma terapêutica «funcionava», mesmo durante os internamentos, até parecia piorar. Um local tranquilo e a colocação de um acesso endovenoso, sem fármacos, era a melhor estratégia de actuação. Aliás, era o que a menina pedia.
Foi observada em múltiplas consultas, fez inúmeros exames, sempre inconclusivos. O acompanhamento em consulta de Pedopsiquiatria, após alguns meses, permitiu verbalizar um segredo, que estava muito, muito bem reservado. Não aconteceram mais «crises», a psicoterapia e a terapia da fala tiveram excelente resultado. Por vezes, tem um ligeiro aperto na garganta, mas, quanto a isso, qual de nós nunca o sentiu…
Dr. Mário Morais de Almeida
Presidente da Sociedade Portuguesa de Alergologia e Imunologia Clínica (SPAIC)