Artigo de Mundo Médico®
Nº 38 / Janeiro e Fevereiro de 2005
12 Em torno da prevenção cardiovascular…Da Sociedade Portuguesa de Aterosclerose para toda a Sociedade
- Dr. Pedro Marques da Silva
Dr. Pedro Marques da Silva
Presidente da Sociedade Portuguesa de Aterosclerose. Médico Internista no Hospital de S.ta Marta. Especialista de Hipertensão Clínica. Responsável do Núcleo de Investigação Arterial e da Consulta de Hipertensão e Dislipidemias
Permitam-me que abuse da vossa paciência e recorde as palavras simples e acutilantes de um livro único da nossa mais recente literatura:
«Ainda hoje estou a ouvir aquele é. Espantoso como bruscamente o meu eu se transformou ali noutro alguém (…). Nesta introdução à perda de identidade que um transtorno do cérebro tinha acabado de desencadear, o que me parece desde logo implacável e irreversível é a precisão com que em tão rápido espaço de tempo fui desapossado das minhas relações com o mundo e comigo próprio.»
Nós, que todos os dias convivemos com esta realidade, sabemos como, apesar de tudo, pelo menos por essa vez José Cardoso Pires – teve sorte, teve muita sorte…
Em 2001, 20.437 portugueses morreram por acidente vascular cerebral, mais de 50% das mortes ligadas ao aparelho circulatório, 19% de todas as causas de morte.
Traduzindo doutra forma: seis acidentes vasculares cerebrais por hora, metade dos quais são fatais.
E é José Cardoso Pires no De Profundis – Valsa Lenta que, mais uma vez, e de forma paradigmática, nos recorda:
«Sem memória esvai-se o presente que simultaneamente já é passado morto.»
As consequências de um acidente cerebrovascular não acabam na altura da sua ocorrência. Num terço dos doentes continua a haver um agravamento progressivo do défice neurológico e cognitivo, que culmina, quantas vezes, em quadros demenciais de origem vascular. 40% dos que sobreviveram acabam por morrer ao fim de um ano, mais de metade ficam com incapacidades físicas graves, necessitados de cuidados médicos continuados.
É, pois, esta urgência, esta realidade que não pode ser mitigada. O mesmo se poderia, certamente, dizer após a ocorrência de um qualquer evento vascular (cardíaco ou vascular periférico).
Até, porque apesar de tudo, os eventos cardiovasculares são uma doença em larga medida evitável.
As taxas de mortalidade por doença cerebrovascular – tal como as relacionadas com a doença cardíaca isquémica – têm, paulatinamente, vindo a decrescer. Entre 1996 e 2000 houve uma descida superior a 8% no número de óbitos por doenças do aparelho circulatório. Resultado certamente do trabalho afincado de todos… resultado seguro da melhoria progressiva do diagnóstico, tratamento e prevenção em que todos temos de estar empenhados.
O Sistema de Saúde, neste como noutros campos, tem de contemplar as expectativas e os anseios do cidadão. Para o cidadão, a Saúde representa a confrontação entre a durabilidade da vida e a superação de situações tidas como ameaças. Dessa forma, a necessidade de bem-estar e de saúde atravessa todos os indivíduos e todas as classes sociais, com formatos e premências distintas e específicas, de acordo com as diferentes matizes materiais e culturais em causa.
O cidadão deve poder influenciar no modo como os recursos são gastos e como os investimentos são direccionados, esperando que as opções feitas, e os ditames que as enformam, se aproximem, o mais possível, das suas reais necessidades.
O médico e o cidadão têm de ir à procura do País. Ao encontro de um País que, em termos de doença e prevenção cardiovascular, começamos só agora a conhecer. De um País, com 221 hospitais (114 dos quais pertencentes ao SNS) e 26.000 habitantes por centro de Saúde, com uma maior proporção – em todas as regiões – de médicos hospitalares do que médicos de Cuidados Primários e de Medicina Familiar, sustentáculos últimos de qualquer programa de implementação e promoção de saúde e, por maioria de razão, de prevenção da doença aterosclerótica.
De um País em que os profissionais de Saúde parecem submergidos na sua prática diária, balizados na assistência que praticam, e olham, tantas vezes com pessimismo, para as reformas tentadas, as medidas começadas, as outras já interrompidas... algumas só pensadas, e todas tão frequentemente assentes em pressupostos discutíveis, funcionalmente desadaptadas e, por isso, capazes de agravar desequilíbrios e de fomentar incredulidades e receios.
De um País, em que a elevada prevalência, assim como a sua diferente expressão e diversa modulação, dos múltiplos factores de risco: das dislipidemias, da hipertensão arterial, do sedentarismo, do tabagismo na nossa Sociedade obriga a redobrar esforços e encarar os novos desafios.
A prevalência da diabesidade (a sobrecarga ponderal e o seu cortejo de morbilidade e mortalidade associada), o aumento da população em prevenção secundária, o envelhecimento progressivo dos portugueses (assim como a maior esperança de vida), as novas certezas trazidas pelas modificações do status socioeconómico e pelo nível educacional e, finalmente, as nuances trazidas pelas minorias étnicas que connosco convivem são factos que temos que arrostar.
É, por isso, ainda mais por isso, que a prevenção e o conhecimento simples de regras práticas de promoção de Saúde tem de ter uma palavra e ser objecto da nossa atenção.
De facto, em termos de doença cardiovascular, qualquer estratégia deve ser entendida como parte integrante, fundamental, de um plano mais largo – e consensual – de promoção da saúde, de prevenção da doença e de redução efectiva das suas consequências nefastas e deletérias. Bem recentemente, a OMS chamou a atenção para que valores de TAS superiores a 115 mmHg explicavam 66% dos eventos agudos cerebrovasculares no Homem e que taxas de colesterol maiores que 140 mg/dl seriam responsáveis por quase 20% dos AVC. Os números são duros, mas estão aí, inequívocos como a própria realidade da doença cerebrovascular e cardiovascular em Portugal: por ano, cerca de 9 milhões de mortes e mais de 75 milhões de anos de vida perdidos resultam da prevalência da hipertensão e da hipercolesterolemia.
O tratamento reiterado da hipertensão arterial e das dislipidemias, o controlo efectivo dos factores de risco e a modificação dos estilos de vida permite uma redução do risco relativo na ordem dos 35 a 45%, independentemente do sexo, da idade ou da etnia. Mais ainda, quanto maior for a efectividade da nossa actuação, maior serão os benefícios que dela podem ser esperados, maior o número de eventos vasculares que podem ser prevenidos.
No entanto, não ignoramos que a abordagem de um factor de risco, por mais importante que seja, não é sinónimo de actuação sobre o risco global cardiovascular. Desejamos, pois, que o tratamento – qualquer tratamento – leve à redução efectiva do risco cardiovascular e dos eventos com ele relacionados, esteja adaptado às características próprias e individuais que se expressam neste ou naquele indivíduo, melhore da qualidade de vida e prolongue a sobrevivência.
Esta é uma prática que passa (1) pela modificação efectiva dos factores de risco, especialmente dos largamente reconhecidos como fundamentais (a hipertensão arterial, as dislipidemias, o sedentarismo, o tabagismo e a diabetes mellitus), (2) pelo uso racional (e atempado) de fármacos cardiovasoprotectores e (3) pela introdução urgente de medidas de reabilitação, tendentes à plena integração (e à realização, social e psicológica) do doente cerebrovascular.
Na procura de uma maior efectividade, a Sociedade Portuguesa de Aterosclerose e outras sociedades científicas congéneres publicaram recentemente as suas Recomendações para a Prevenção Primária e Secundária da Doença Aterosclerótica. Nelas incentivam os médicos para a acção: compreender e discutir os seus diversos componentes, implementar uma estratégia preventiva eficaz e actuante e reconhecer a necessidade de atingir os objectivos terapêuticos propostos surge como um imperativo ético de que não podemos abdicar.
No entanto, motivos diversos (deficiente definição do problema, focagem prioritária do sistema de saúde – e dos seus intervenientes – no tratamento em desfavor da prevenção, faltas de tempo e de incentivos, dificuldades na formação e treino inadequado dos intervenientes, que coabitam um terreno falho de estruturas e de meios, em que proliferam os erros de comunicação) justificam que estas (ou outras) recomendações não sejam implementadas.
É, por isso, desejável melhorar a efectividade da nossa actuação face ao indivíduo em risco e conseguir a melhor forma de estruturar a nossa intervenção. Resta assumirmos, de forma definitiva, a prevenção cardiovascular na nossa prática diária. A prevenção cardiovascular e a redução do risco global pressupõe que sejamos capazes de:
• Reconhecer adequadamente os diversos factores de risco, recorrendo a métodos complementares, que ajudem a melhorar a acuidade da estratificação prognóstica.
• Aumentar (e maximizar) a percepção e o reconhecimento por parte da tutela, do público e de todos os meios de informação, da necessidade de diagnosticar e tratar os factores de risco cardiovasculares e dos benefícios sociais e económicos que uma estratégia como esta acarreta.
• Implementar a aplicação larga e fundamentada dos resultados dos estudos clínicos já realizados, impulsionando a realização dos ensaios que facilitem o esclarecimento de algumas das dúvidas que ainda persistem.
• Estimular as estratégias adequadas à melhoria da aderência ao tratamento, pelo enriquecimento da relação médico-doente e pela opção por fármacos com um perfil favorável de efeitos adversos.
E, também, aprender a comunicar o risco. Comunicar o risco vascular, promover uma estratégia de Saúde, facilitar a compreensão da modificação de estilos de vida, implementar atempada e fundamentadamente uma terapêutica é uma outra forma de entender o acto médico – e de prolongar os seus efeitos. A prevenção cardiovascular é, antes do mais, um forte apelo à acção.
É, certamente, um esforço diário, mas rico de resultados. É urgente interessar os doentes, os familiares e a população num projecto alargado e consensual de prevenção cardiovascular que ponha ênfase no provado e promova a adopção das medidas necessárias para vencer o desafio que é, ainda hoje, a doença aterosclerótica e cerebrovascular em Portugal.
E agora:
«O tempo não pára, nem importa/Que vividos os dias (se) aproximem»
J. Saramago