Artigo de Mundo Farmacêutico®
Nº 18 / Setembro e Outubro de 2005
08 Automedicação versus indicação farmacêutica
- Prof.ª Doutora Maria Augusta Soares
Prof.ª Doutora Maria Augusta Soares
Directora Científica da ANF
Professora da Faculdade de Farmácia da Universidade de Lisboa
Poderia dar várias definições de automedicação, no entanto, prefiro não a definir, mas apenas referir que a automedicação é um processo que conduz a que o doente assuma a responsabilidade de melhoria da sua saúde, previna e trate os seus pequenos mal estares sem recurso à consulta médica. Esta independência do doente permite-lhe resolver situações autolimitadas e de curta duração.
A automedicação tem sido alvo de discussões no seio da EU, tendo havido consenso quanto ao facto de se recomendar apenas para alívio de sintomas, não excedendo a duração de sete dias (três para o caso de febre), requerendo atenção especial na grávida, mulheres a amamentar, bebés e crianças e ainda estando contra-indicada quando os sintomas forem graves, persistentes, ou quando houver suspeita de reacções adversas responsáveis pelos mesmos.
Admite-se que a automedicação responsável é benéfica, embora pouco se discuta sobre o que é realmente a «automedicação responsável».
Importa ir de encontro com as necessidades manifestadas pelas populações, isto é, dar-lhes mais responsabilidades sobre a sua saúde, maior capacidade de escolha e acesso aos cuidados, em suma, incutir-lhes maior confiança e independência, para prevenir e tratar as suas queixas ocasionais.
Apesar de já possuir cerca de 10 anos, é interessante referir um estudo que a ANF realizou sobre a automedicação em Portugal, nos anos de 1995-1996, com a intervenção de 4135 indivíduos que adquiriram medicamentos que não requerem receita médica. Neste, verificou-se que a prevalência de automedicação era de 26,2%, sendo superior no sexo masculino (28,4% para o homem versus 25,2% para a mulher); no grupo etário dos 10-49 anos de idade (31%); nos indivíduos com maior escolaridade (32,5%); nos que recorriam ao farmacêutico para solicitar apoio (42,8%); nos que referiam ser obrigados a esperar de uma semana a
um mês para obter consulta médica (28,9%), entre outros.
De facto, a automedicação em Portugal também tem algum significado e a atitude do doente é condicionada por múltiplos factores conforme provou este estudo. O farmacêutico, conforme foi demonstrado, é frequentemente interpelado para colaborar na selecção do medicamento mais adequado a cada situação, o que comprova a confiança que os doentes possuem no seu Farmacêutico.
A Federação Internacional de Farmácia (FIP) salienta que, apesar dos doentes pedirem pelo nome um medicamento para automedicação, não se deve admitir a priori que ele o conhece bem, a ponto de o utilizar correctamente. Assim, o doente pode apenas ter ouvido falar dele sem que conheça com rigor os seus efeitos, reacções adversas, interacções, contra-indicações, como o deve tomar, durante quanto tempo deve fazer o tratamento, entre outras informações importantes para garantir a sua efectividade e segurança. A FIP adianta ainda que o conhecimento que os doentes possuem destes medicamentos provêm de múltiplas origens, designadamente da comunicação social, dos folhetos informativos, de amigos ou familiares, etc., conhecimento que nem sempre é correcto.
Segundo as recomendações da FIP, o farmacêutico está bem-posicionado para garantir a efectividade e a segurança do uso dos medicamentos de venda sem prescrição médica obrigatória, tendo em consideração os seus conhecimentos técnico-científicos actualizados, a capacidade de reconhecer os sintomas, o facto de estar disponível sem marcação de consulta e de ter a capacidade de recomendar a consulta médica quando verifica que a situação que o doente coloca assim o exige. Pretende-se pois que o Farmacêutico tenha um papel activo na Indicação Farmacêutica orientando os seus doentes para o tratamento de pequenos mal-estares.
É necessário, contudo, que esta indicação farmacêutica se baseie nos conhecimentos técnico-científicos, na evidência, e se possível, seja orientada por Normas (directrizes ou guidelines) elaboradas e aceites por Organizações Técnico-Científicas, como as Normas que estão a ser elaboradas pela Ordem dos Farmacêuticos.
A FIP recomenda ainda que o treino em Comunicação Interpessoal seja uma preocupação dos Farmacêuticos de forma a interagir cada vez mais activamente com os seus doentes e a serem cada vez mais efectivos na prestação de informação sobre os medicamentos que dispensam.
Referiu-se que a automedicação deve ser efectiva e segura, razão pela qual existem critérios adoptados pela Entidade Reguladora, Infarmed, para garante destes atributos. Mas as exigências para esta garantia não se limitam a autorizar os medicamentos disponíveis para automedicação, vai mais longe, isto é, deve haver a garantia de que eles sejam utilizados para as indicações autorizadas, nas doses recomendadas e durante o período de tempo adequado, tendo em atenção as contra-indicações versus estados fisiopatológicos (gravidez, amamentação, etc.), versus certas patologias (insuficiência renal, hipertensão, diabetes, insuficiência hepática, etc.), as interacções farmacológicas com medicamentos, alimentos ou bebidas alcoólicas e ainda de que se previnam ou minimizem as reacções adversas de gravidade variável, que estes podem ocasionar.
Está descrito que os dados de segurança existentes sobre estes medicamentos não se encontram suficientemente actualizados dado que as moléculas disponíveis para automedicação são conhecidas há muitos anos e não são sujeitas a estudos específicos de eficácia e segurança, nem parece existir interesse particular na notificação de reacções adversas ao sistema de farmacovigilância, razão pela qual os conhecimentos que se possui podem não ser os suficientes.
A efectividade passa pela escolha do medicamento, respectiva forma farmacêutica e esquema posológico em conformidade com os sintomas e características individuais do doente, a segurança é garantida quando são tomadas medidas que previnam contra-indicações, interacções e reacções adversas. De facto, o farmacêutico é o profissional de saúde melhor posicionado para colaborar com os doentes na orientação da sua automedicação através do estabelecimento de um diálogo, que pode parecer sem importância a um leigo que assista, mas que permite que o farmacêutico identifique a melhor opção terapêutica para cada indivíduo em cada circunstância.
Westerlund, na Suécia, realizou um estudo que publicou recentemente, no qual demonstrou que a automedicação não é desprovida de problemas relacionados pelos medicamentos (PRM). Westerlund teve como objectivos identificar e caracterizar o número e o tipo de PRM que ocorrem com os medicamentos usados em automedicação.
No estudo participaram cerca de 450 farmácias que documentaram 1425 PRM em 1418 doentes. De facto, este número de PRM não é insignificante, o que reforça a recomendação para uma intervenção farmacêutica cada vez mais activa na indicação farmacêutica, de forma a melhorar os serviços prestados aos seus doentes e, consequentemente, os resultados dos cuidados de saúde.
Os doentes devem estar devidamente informados de que uma automedicação efectuada sem apoio do farmacêutico pode negligenciar sinais de uma doença que requeira consulta médica, mascarar sintomas com atraso do diagnóstico, conduzir ao tratamento de reacções adversas de outros medicamentos, ao abuso, ao agravamento de outras doenças, etc.. Deve ainda saber que o farmacêutico é capaz de avaliar e identificar as suas queixas seleccionando os medicamentos mais adequados para cada doente e ocasião, assim como o esquema terapêutico e a duração adequada do tratamento.
A indicação farmacêutica é maximizada se as populações souberem que informações devem prestar aos profissionais de saúde, quando lhes apresentam as suas queixas e lhes solicitam apoio. Assim, quando o doente recorre à farmácia para solicitar um medicamento de venda sem prescrição médica deve ser capaz de descrever adequadamente as suas queixas (sintomas, sua duração factores que agravam ou aliviam, outras doenças que possua, medicamentos que toma, tentativas que fez para tratar as queixas e seus resultados, etc.) será então alvo da indicação farmacêutica e da Informação ajustada e individualizada sobre os medicamentos que vai tomar e sintomas apresentados.
Acreditamos que a intervenção do farmacêutico na terapêutica de situações ligeiras e autolimitadas com o recurso a medicamentos de venda sem prescrição médica obrigatória melhora a saúde das populações, economiza recursos ao Estado e deixa mais tempo livre ao médico para se dedicar a doenças mais graves, particularmente se o farmacêutico seguir as Boas Práticas de Farmácias (Normas de Informação ao Doente e de Automedicação) e os Protocolos ou Normas de Indicação Farmacêutica, da Ordem dos Farmacêuticos.
Pelo exposto, cremos que o Ministério da Saúde, ao disponibilizar medicamentos fora das Farmácias, deve deixar de ter em conta o uso efectivo e seguro do medicamento e de salvaguardar a saúde das populações, pois que, sem estas medidas, o uso indiscriminado de medicamentos pode conduzir a um aumento dos custos com a saúde a nível nacional como consequência dos PRM a que os doentes ficam sujeitos.
Confiamos que, para além do farmacêutico, todos os outros profissionais intervenientes na saúde salvaguardem a racionalidade da terapêutica medicamentosa na medida das suas responsabilidades.